sexta-feira, dezembro 29, 2006

Lapso

Aos 29 dias do dezembro de 2006, Bastos sorriu. Após censurar uma guriazinha que brincava na praça pela bola que o atingira, a menina correu e voltou trazendo-lhe uma flor, uma margarida, flor comum nos jardins urbanos. Foi a primeira vez que Bastos sorriu desde seus treze anos, era uma pessoa amarga. Nunca voltou a sorrir.

quinta-feira, dezembro 28, 2006

A árvore de natal

caiu uma árvore de natal
é estranho
esas geralmente não caem
mas caiu
e junto uma estrela
a floresta pegou fogo
é simples assim
deveriam cuidar
com mais cuidado
árvores de natal
não dá nem lenha
restou intacta do incêndio
caída
como para simbolizar alguma coisa
árvores de natal gostam de simbolizar

Modorra

Sonho cansado
Sono preguiçoso,
Paquiderme

Calor de verão
Sol castigando
Pausa no tempo

Acordei amolecido
O ar parado cansou
Cantou perto o mosquito
Longe a vontade passou

A culpa volta moendo
"Indolência!", Maquina a cabeça
Estico um pouco o braço
Continuas aqui.

quarta-feira, dezembro 27, 2006

Apenas

verso leve
como voar
não diz porque não pousa
só passa
sussurra e passa

verso leve
beija a face adormecida
não ouve porque repousa
mas sonha
sonha e atravessa

verso leve
travesseiro de penas
flutuam nuvens sobre a cidade
que o vento forma e deforma
segundo sua velocidade

verso leve veloz
deixa-se na reticência
como se o infinito fosse
livre verso leve

sob o fio

a lâmina afiada aponta
a ponta brilha
cega meu olho
me sossega

finca a carne
e molha o chão
vertigem dosada
a queda dos pingos
a sincronia de uma paixão desaforada

arde a vida em chama
ávida clama e dança
são dois dedos de oxigênio
gênio!
cai o corpo carbonizado

a faca chora
tirou-me o seco
lágrimas quentes
sinto muito
como nunca senti

Verdes Raros

Sonhos sensatos e raros mergulhos
Um gozo de tempos em tempos de paz
Jogos de almas, palavras trocadas
Cadeia de eventos em ventos do sul.

Bato de frente com verdes mareados
Batem na fronte os verdes mareados

Contam histórias, afogam silêncios
No verde sem fim, fui aprisionado
Conta comigo de novo começo
Não escondo mais meu sorriso.

Bato de frente
Batem na fronte

terça-feira, dezembro 19, 2006

Previously on Diverso e Avesso

Toda fantasia começa com um menino no centro da cena.

Que não conhece o mundo a sua volta, então inventa.

Subitamente, a fantasia acaba. Sons de teclados, fragmentos de diálogos das salas vizinhas, o ventilador de um computador, o silêncio que não tem origem, tudo se mistura freando o passar do tempo. Inquieto, mudança brusca de ambiente, o conforto do mesmo cede lugar à mudança. Hábito ou vício? Tudo isso por uma economia burra. Um canal dos meus fones de ouvido estraga, e toda a realidade reaparece, real.

Ah, os acordes da realidade! Emudecem uns ao outros - o turbulento silêncio que, proclamando a ditadura da liberdade, torna-nos surdos à verdade.A cena agora é a de um comício, que dará origem a uma passeata. O recado final, dado por um dos homens do palanque, não poderia ser outro. Ouvem todos o que querem ouvir, a liberdade aos gritos, e saem apressados a correr o mundo - a catequizar os leigos. Um dos homens corre à sua vila e proclama - "estamos todos livres!", e o povo passa rapidamente de desconfiado para igualmente extasiado - "livres!". Que bênção! O grande dia! Visitam-se as portas de todas as casas. A família que estava reunida em volta da tv até esquece da novela por um instante. Pareciam eles mesmos estarem dentro de uma, coisa estranha, até então sua memória dava conta de uma liberdade comunicada à margem de um longínquo rio, ao sol de um longínquo tempo, por um homem em seu cavalo empunhando sua espada, como mostrava uma figura num livro de história do colégio. O caçula abre a boca e profere sua primeira palavra em língua portuguesa, com uma voz fresca porque nova, doce porque ingênua - "liberdade", e arranca a cabeça da boneca da irmãzinha.

Caminham todos felizes pela boa nova, a euforia leva-os para frente. Alguns gargalham pela simples visão da alegria de seus pares. Nada pode contê-los a partir de agora. Até que um rapaz muito tímido, sempre contemplativo, sempre chamado de abobalhado na surdina pergunta com a voz tão insignificante quanto a sua presença: e para onde vamos agora? Como assim? Somos livres, não precisamos dar satisfações! Todos condenam o pobre, mas não gargalham mais, nem ao menos continuam seu caminho. Já não sabem mais livres de que, ninguém é capaz de responder o que exatamente os prendia. Livraram-se da ilusão, precisavam agora livrar-se da realidade. E, no meio da multidão desorientada, uma boneca sem cabeça é pisoteada sem nem ao menos ser notada.

Desliga a tv com a imagem, estranhamente dolorosa, da boneca pisoteada fixa em suas retinas, e permanece imóvel. Lembranças de uma revolução. A tão falada revolução que não viveu e sobre a qual seus pais parecem ter feito um pacto de silêncio. Talvez por isso não estivessem agora naquela sala. Uma revolução inventada, a vergonha de uma geração.Ele nunca tivera bonecas, nem mesmo irmãs que as tivessem, e, se fosse bem sincero à sua memória, notaria uma escassa infância que ainda mal desfrutou. Carrinhos e bolas lhe escapavam. Talvez por isso a boneca decepada lhe atingira o peito como um assombro que vem e rouba o ar e suspende o corpo - foi por uma mistura de aflição e fascínio, num reflexo, que apertou o off.Na tv ainda se viam desenhados, na parte inferior direita, os contornos de um corpo genérico, mas sem uma generalidade básica, ausência esta que lhe dava calafrios. Sentiu-se inseguro e desamparado. E ainda mais devido à sua imobilidade irreversível. Uma eternidade se passou até que alguém entrou na sala.

Muito bem crianças, hora do passeio no pátio. Aproveitem que o sol está lindo.
Ver a televisão era um momento bastante esperado por todos seus colegas e por ele também. Mas naquele dia a experiência tinha sido completamente diferente. Aquela imagem era diversa de tudo que já tinha visto. Imagens da glória da libertação eram comuns, não era aquilo que despertava sentimentos contraditórios em seu peito. Era a boneca que apareceu no filme, sem ser notada por mais ninguém. Poucos segundos, num canto da tela, e sem cabeça. Já tinha brincado com uma daquelas uma vez na sala de jogos. Já tinha estado lá sete vezes, e lembrava de cor de cada uma delas. Na última, tinha sido um dos melhores da turma naquele ano. Orgulho! Pôde brincar com um carrinho sem fio! A imagem não lhe saia da cabeça, podia sentir até agora o poder de dirigir aquele carro que se movia como num passe de mágica, pelo mero apertar de botões. Mas aquilo não fazia sentido, não havia brinquedos antes da libertação. As crianças trabalhavam naquele tempo por todo o tempo. Como haveria uma boneca na rua, ignorada e destroçada daquela maneira? Algo estava errado. E aquilo embrulhava o estômago.

À noite, a tensão já tinha ido embora junto aos últimos raios do entardecer. Um vento suave mas gelado como que o anestesiou por completo, e, agora, um único sentimento brotava do fundo de sua alma. Na verdade, melhor seria dizer que não se percebiam as raízes daquela sensação que mais parecia um gigantesco nada, tão profundo e infinito como o negro céu sobre sua cabeça, tão trespassante como aquele minuano. Sua dor desta vez não era sentida, era, antes, impossível, da mesma maneira que sua própria existência lhe parecia infactível. Teria pensado, se naquele momento pudesse pensar, em todas as perguntas que ao mundo pudesse fazer. Divorciado de seus sentidos, quem sabe tenha desejado apenas que aquela noite nunca acabasse, e a reticência compulsória da sua natureza reinasse para todo o sempre.

Silêncio. Silêncio completo. Não dá prá ter silêncio completo. Sempre fica uma vozinha. Não vou pensar em nada ... tão escuro ... dia de TV ... cheiro... ? ... fumaça? ... queria ser adulto prá ficar acordado... droga! Não consigo ficar sem pensar. Sempre fica alguma coisa. Será que alguém consegue? O Rafael acha que pode tudo, abobado. Aposto que nem ele consegue. Tomara que amanhã tenha suco no café... suco no café? A gente diz café, mas não é sempre café... coisa louca... estudar prá ser importante. Queria saber jogar, correr, sei lá. Aí podia ser importante sem estudar... pena que não pode ligar a luz ... bomba ... e a professora? Ela é muito mais esperta do que o Rafael, me ensinou tudo que eu sei, vai que ela sabe não pensar também? Aí pode ouvir o silêncio, mas deve dar medo, ficar sozinho, sem nem a tua cabeça, mas não pode dar medo, senão não é silêncio, aí já pensou, então como é? ... fez frio mas tava bom brincar, correr esquenta, mas eu canso, droga, coisa sem graça, aí ninguém me escolhe pro time, mas eu sou bom em história, ninguém vai melhor que eu, mas ninguém se importa com aula, mas a professora me elogiou! ... hoje teve TV depois da oficina ... aquela boneca ... quem não ia ver? Nem se importaram, e ela tava sem cabeça ... uma vez vi matarem uma galinha ... festa ... quebraram o pescoço e depois cortaram a cabeça ... assaram ... ... escuro ... amanhã tem... que morno... ... galinha ... ... ... boneca ... ... morno ... ... ...

Está ficando muito tarde - pensou, quando deu-se por si. Caminhou de volta à casa. No trajeto, deteve-se, como de costume, um breve tempo na pracinha longe dois quarteirões de sua casa.O orvalho escorria silencioso pela gangorra. O balanço movia-se levemente, mas não a ponto de se fazer ouvir. Chegou ao centro da pracinha e tomou assento no gira-gira. Depois, ainda que este estivesse úmido, deitou-se, com o corpo pequeno que facilmente se adaptou à forma circular do brinquedo. Com a ponta do pé esquerdo fez força para conseguir embalo, e começou a girar com velocidade cada vez maior, até não precisar mais dar impulso. Sua visão era a de um céu em espiral, as estrelas fundindo-se e se separando como se fossem cometas cruzando-se. O negro profundo do espaço ganhava ares de mistério, como o interior impenetrável de uma caverna. Agarrou-se com mais firmeza ao metal, tinha a sensação de que poderia perder-se pra sempre caso voasse dali e fosse engolido pela escuridão. Fechou os olhos, dentro de si ainda era quente.O gira-gira foi perdendo velocidade, parou. Abriu os olhos, o céu sobre si ainda girava, confuso. Com esforço levantou-se. Andou alguns passos até sentir novamente o frio da noite, sua única companhia ali. Dirigiu-se à gangorra. Abaixou a ponta que estava no alto - estava mais seca - e se sentou, primeiro mantendo-a equilibrada através das pernas, depois, baixando aos poucos, até fazer chegar ao chão. Pôs-se a mirar a ponta oposta, agora em situação diversa, no ponto alto. Por um momento, quis que alguém estivesse ali com ele - nem que fosse o Rafael -, só para sentir-se mais longe do chão, no ar, como a estrela que brilhava em linha reta com a ponta oposta. Um peso para a leveza. Sempre sonhara em voar...A umidade veio concentrar-se em sua direção. Pensou na força da gravidade, tão constante e silenciosa. A professora havia explicado com uma maçã. A mesma maçã sobre a qual falara a tia da catequese, pra falar de pecado, mas isto ele não havia entendido bem. A gravidade sim. Levantou-se. Já estava se molhando demais.

O pecado é bem mais confuso. Porque o pecado é mau. Mas, quando é pecado, é porque tá bom. Se é ruim, se eu não gosto, se machuca, não é pecado. Ficar dormindo até mais tarde quando tem serração é pecado. Contar prá todo mundo que eu acertei tudo no ditado é pecado. Pecado mesmo é a Rita, eu não sei bem porque, mas sinto.Coruja curiosa, parece deus espiando prá me ver pecando, olhos arregalados grudados em mim.Coruja de sobretudo, esperando eu pensar maldade para me prender em suas garras.Calças geladas. Molhadas. Não posso me trocar... fazer barulho nem pensar. Se se dão conta que me escapuli... melhor frio do que surra. Não sei. Surra passa logo, frio rasga.Rasgando carne, trincando ossos, frestas tão pequenas espantam um sono que o cansaço convidou com tantos folguedos. Silvando baixo, intermitente, parecia estar por todos os lados. Sobretudo, os olhos crescem no escuro, fixos, inquirindo, lendo tudo, até o que fica lá no fundo. A gangorra tão conhecida toma proporções assustadoras quando sobe, o equilíbrio acaba, e o abismo não parece ter fundo. Queda sem fim, nem fim no tempo, nem fim no espaço. Concomitantemente, tudo no mesmo ponto, no mesmo instante. Silêncio igual teria duvidado pouco tempo atrás, tudo junto muito longe.Escureceu.

A mãe achou que tivesse mijado nas calças, o que não deixou de mencionar à mesa do café-da-manhã. Engoliu a vergonha com pão e leite, mais dificilmente porque era simulada. A irmã menor lançava-lhe um olhar incômodo. Lembrou-se da coruja - já não sabia se tinha sonhado com ela ou se a vira de fato na noite anterior. O olhar silencioso e perturbador que inquiria a solução de seus enigmas. Enigmas que ele mesmo não saberia resolver.O pai fechou o jornal, levantou-se. Era o sinal, todos para o carro.Alguma notícia importante, pai?O pai manteve-se quieto e muito sério.Sim, havia uma. Mas o pai de Israel não havia gostado nem um pouco dela.

Não era exatamente uma notícia, era antes um aviso disfarçado na seção de variedades. Mas não havia dúvidas de que era ele.
Não havia mais volta. Tinha começado.

Com sorte, talvez ninguém o reconhecesse, ou, pelo menos, não alguém que fizesse caso com o contexto da foto. Mas era, definitivamente, um aviso, um último recado que pedia com urgência uma atitude. Mesmo a legenda estava cheia da perspicaz ironia de Flávia, dizendo tudo, quase sem dizer. Mas como, diabos, ela conseguira aquela foto? Olhou o retrovisor, sentindo-se vigiado e, depois, desprotegido, apesar de que, aparentemente, a rua estivesse deserta. Israel não deixou de perceber a aflição calada do pai. De um certo modo, isso lhe acalmou um pouco. Afinal, não eram simples bobagens de criança aqueles sentimentos que lhe tomavam. Seu pai parecia ter mil segredos dentro de si, quem sabe colecionados ao longo da vida toda. Que ele, Israel, faria com os seus? O céu, as estrelas, a lua, todos confidentes que lhe entendiam como se parte dele fossem. Restava-lhe ainda uma vontade de que, não só que o ouvissem, respondessem às suas indagações ou ao menos compartilhassem seus mistérios de forma menos silenciosa.A irmãzinha puxou seu cabelo, já estava virando costume. Antes que Israel revidasse de alguma forma, porque criança nunca deixa barato, a mãe interveio, falando firme com a caçula. A pequena Samira queria atenção, e a cabeça de Israel era a única ao seu alcance. Talvez mais alguns poucos anos e já pudessem conversar sobre isto de caminhar com as próprias pernas.

Sua primeira providência era tirar todos dali. Não queria sua família envolvida, eles não precisavam saber de nada... seria melhor para todo mundo. Ela não tinha o direito. Diabos, tinha sim, e ele esperava por aquele dia, sabia que chegaria.Apesar da raiva e do medo que tomavam conta, a sutileza com que foi feito lhe dava um conforto estranho. Uma lembrança boa de Flávia. Todo o tempo que passaram juntos, não foi só sexo, e também não foi uma simples amizade, um simples namoro. Tinham um duelo permanente, estavam sempre desafiando um ao outro, sem nunca deixar isto claro. Eram desafios intelectuais ou morais cuja principal característica era exatamente que cada um se esmerava para que a afronta não fosse claramente percebida. Era um jogo de dissimulações, mas era antes uma disputa de egos. Quem tinha o senso de humor mais requintado, tão requintado que ninguém mais poderia perceber que ali havia humor. Admirava Flávia e sabia que era recíproco.Precisava deixá-los em lugar seguro, iriam atrás dele com certeza, o que significava separação. Da esposa não tinha grandes problemas. Gostava dela, era uma boa pessoa e tinha consciência de que ela o amava. Mas separar-se dos pequenos seria um martírio. Notava em Israel as mesmas inquietações que sentia quando era um guri. Pensativo, mas ao mesmo tempo dissimulado, ele não fazia perguntas. Não externava perguntas, bem entendido. Aquele olhar vazio não enganava. Sozinho, era bem capaz de acabar como o pai.Ao mesmo tempo, Israel sentia os olhos da coruja cada vez mais perto. A testa do pai estava suada, e ele preferiu ficar quieto. O pai não respondeu para onde iam. Não perguntou duas vezes, tinha aprendido que era melhor fingir que estava tudo bem. Ninguém gostava de fuxiqueiros. Ele não, pelo menos.Estava enferrujado, não estava mais acostumado a estas fugas. A última tinha sido sua grande peça em Flávia. Claro que tinha todo o contexto da libertação, as cartas e tudo mais. Mas sabia que ela não deixaria barato, pregaria uma muito maior.O primeiro carro cortou a frente deles. O segundo chegou logo em seguida, ninguém viu de onde surgiu. Saíram três homens com uniformes dos libertadores de cada um deles...

Israel acordou e não reconheceu o quarto. Não era um quarto da zona habitacional. Nem era como os da escola, que tinham beliches e grandes janelas. Este tinha cortinas, suas paredes eram pintadas, era bem bonito e grande. Sua cama era a única ali. Ainda assim, era bem maior que o quarto de sua casa, onde dormiam ele e sua irmã. Por falar nela, não estava ali. Nem ela e nem seus pais.

Depois que os libertadores os fizeram descer do carro, a irmã começou a chorar. Um deles, que parecia mais novo do que os outros, mas que era, definitivamente, o chefe, avisou calmamente minha mãe que a criança deveria calar-se, caso contrário, eles o providenciariam. O pai só precisou olhar Samira nos olhos e ela compreendeu e ficou em silêncio. Não trocaram mais nenhuma palavra durante todo o trajeto. Foram conduzidos a algum lugar nos fundos de um furgão, rodaram por horas. Durante todo este tempo, Israel teve medo. Ainda sim, não pode deixar de ficar pensando no primeiro carro que os parou. Nunca tinha visto um daqueles. Chegou muito rápido, parecia rápido até quando parado. E ele ficara extasiado com aquilo. A esses pensamentos, de curiosidade e fascinação infantil, juntavam-se pensamentos de que aquela estrela lhe disse alguma coisa. Voaria, não tinha dúvidas. Olhou para seu pai com saudades. Sabia que tudo aquilo era por causa dele, provavelmente nunca mais o veria. Esperaram todos sentados no banco de uma grande garagem. O pai parecia resignado e sua mãe tinha os olhos vermelhos. Chorara baixinho na traseira do furgão. A irmã estava grudada no colo da mãe e parecia em choque. Desde que o pai a repreendera com os olhos, não abriu mais a boca. Quanto tempo ali ficaram, não saberia dizer. Provavelmente, dormiu no banco da garagem e dali fora levado para o quarto.
Lembrava de ser dono de um urso, um urso dourado. Os fragmentos do sonho ainda eram vivos na sua memória. O urso tinha os olhos tristes e brincava com miniaturas de soldados no pátio. Pequenos soldados de plástico moldado, inanimados, como os que vira no museu de Santa Maria, anos atrás. O amigo urso dispôs os bonecos simulando uma batalha. Verdes contra amarelos, que tinham armado uma emboscada para os primeiros. O pátio era o mais cumprido que já vira. Ainda assim, o urso não cabia ali, ficava apertado, e seus olhos passaram de tristes e chorosos para dotados de uma raiva sem limites. Israel chamava pelo seu nome, Bóris, pedindo calma. Mas a raiva crescia nos olhos de seu amigo animal e o terror do ataque iminente paralisou seu corpo e sua voz. Não podia gritar por socorro e nem ao menos se afastar o suficiente. Nos olhos da besta, uma boneca esfarrapada e decapitada refletia e, em uma das mãos da boneca, o pai chorava de arrependimento.

quarta-feira, dezembro 13, 2006

cadentes

para si
só quer para si
o sol, o seu sol

parece até que ar
de um lugar
de ser só, de ser só, de ser só

mas eu sei que só eu não
serei não, perecerei
que se fosse um sol só de arder
morreria por mim

eu não quero o fim de tudo em mim
quando o sol puser o céu assim
sem cor, sem me ver
que eu seja estrela de alguém
seu sol, luz de ser

terça-feira, dezembro 12, 2006

Israel acordou e não reconheceu o quarto. Não era um quarto da zona habitacional. Nem era como os da escola, que tinham beliches e grandes janelas. Este tinha cortinas, suas paredes eram pintadas, era bem bonito e grande. Sua cama era a única ali. Ainda assim, era bem maior que o quarto de sua casa, onde dormiam ele e sua irmã. Por falar nela, não estava ali. Nem ela e nem seus pais.
Depois que os libertadores os fizeram descer do carro, a irmã começou a chorar. Um deles, que parecia mais novo do que os outros, mas que era, definitivamente, o chefe, avisou calmamente minha mãe que a criança deveria calar-se, caso contrário, eles o providenciariam. O pai só precisou olhar Samira nos olhos e ela compreendeu e ficou em silêncio. Não trocaram mais nenhuma palavra durante todo o trajeto. Foram conduzidos a algum lugar nos fundos de um furgão, rodaram por horas. Durante todo este tempo, Israel teve medo. Ainda sim, não pode deixar de ficar pensando no primeiro carro que os parou. Nunca tinha visto um daqueles. Chegou muito rápido, parecia rápido até quando parado. E ele ficara extasiado com aquilo. A esses pensamentos, de curiosidade e fascinação infantil, juntavam-se pensamentos de que aquela estrela lhe disse alguma coisa. Voaria, não tinha dúvidas. Olhou para seu pai com saudades. Sabia que tudo aquilo era por causa dele, provavelmente nunca mais o veria. Esperaram todos sentados no banco de uma grande garagem. O pai parecia resignado e sua mãe tinha os olhos vermelhos. Chorara baixinho na traseira do furgão. A irmã estava grudada no colo da mãe e parecia em choque. Desde que o pai a repreendera com os olhos, não abriu mais a boca. Quanto tempo ali ficaram, não saberia dizer. Provavelmente, dormiu no banco da garagem e dali fora levado para o quarto.
Lembrava de ser dono de um urso, um urso dourado. Os fragmentos do sonho ainda eram vivos na sua memória. O urso tinha os olhos tristes e brincava com miniaturas de soldados no pátio. Pequenos soldados de plástico moldado, inanimados, como os que vira no museu de Santa Maria, anos atrás. O amigo urso dispôs os bonecos simulando uma batalha. Verdes contra amarelos, que tinham armado uma emboscada para os primeiros. O pátio era o mais cumprido que já vira. Ainda assim, o urso não cabia ali, ficava apertado, e seus olhos passaram de tristes e chorosos para dotados de uma raiva sem limites. Israel chamava pelo seu nome, Bóris, pedindo calma. Mas a raiva crescia nos olhos de seu amigo animal e o terror do ataque iminente paralisou seu corpo e sua voz. Não podia gritar por socorro e nem ao menos se afastar o suficiente. Nos olhos da besta, uma boneca esfarrapada e decapitada estava refletida e, em uma das mãos da boneca, o pai chorava de arrependimento.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

terça-feira, dezembro 05, 2006

Cebola de máscaras

Inconformado, despi-me das fantasias que tinha criado para viver. Atônito, descobri que ainda vestia uma. Faltava decidir por conformar-me com isto ou, como uma mosca presa no vidro de uma janela aberta, lutar pateticamente, arrancando um por um os disfarces subseqüentes.
Não sei qual escolhi, mas estou vestido neste momento.

sexta-feira, dezembro 01, 2006

Dezembro

Dezembro é um mês incrível. Alguém acredita em dezembro? Eu não acredito. Alguém vê, por exemplo, dezembro passar? Não passa. Tu achas que ele nem mal veio já vai, mas ele não foi nem irá: não espalhem, mas dezembro não existe. Alguém consegue ler num calendário os dias de dezembro? Dias de um calendário são massantes, protocolares. Dezembro não é rotina. O ano tira férias em dezembro. O que tinha pra acontecer, aconteceu, o resto é retrospectiva. Ou é pré-datado pra janeiro. Já percebeu? Nem os cobradores aparecem em dezembro!

Eu sei que é difícil acreditar, afinal são muitos anos (quantos tu tens?), eu chego hoje ao meu vigésimo terceiro dezembro. E quase acredito. Mas deveríamos ter suspeitado quando descobrimos que nem mesmo o Papai Noel aparece em dezembro. É tudo invenção. É tudo invenção! Muito necessária, há que se admitir. De que outra forma um fim se ajustaria ao começo com tamanha perfeição. Imagina, novembro acabar e a gente, assim, dá de cara com janeiro! Precisávamos mesmo deste amortecedor, este plasma onde confundem-se as matérias de passado e futuro. O que passou é digerido e o que é devir vem num sopro, feito mágica, cola na gente. Passamos sopostos trinta e um dias com essa nítida sensação de que um grande plano está sendo traçado às escondidas. Dezembro está embalado pra presente. Entendeste? Ele é sem ser, ou, é o que virá, mas agora. Sempre vestido de mistério, dezembro atravessa-nos o espírito. É isto, se queres saber: ele existe, mas sob outra forma de existência. É por isso que gosto tanto de dezembro: ele não tem tempo nem lugar, mas não deixa de ser. Vã será a tentativa de entendê-lo. Dezembro é de sentir, não de saber. Na verdade, talvez isto também seja o precioso da coisa toda: não saber. É preciso ter alma pra amar dezembro, e reconhecê-la.

Instiga este acaba-não-acaba. Dá até um calafrio. É como se novembro e janeiro fossem prédios bem altos, à distância de metro e meio: sabemos que conseguiremos saltar de um prédio para o outro, mas a proximidade com o fim nunca nos deixa tão vivos, e provoca arrepios. Concorda?

Sejas um otimista ou um adepto do conformismo, estejas em quaisquer das variações entre a esperança convicto e o niilismo convencido, percebe que dezembro penetra tuas narinas e tu já não distingues quando respiras ou sufocas, teus desejos parecem ocupar o mesmo espaço de tuas frustrações, tudo assim confundido, que chega a ser estranho quando parece fazer sentido. Isso se desse pra tomar dezembro entre os dedos e mirá-lo como uma borboleta. Mas dezembro pousa tão macio no dia primeiro, levanta tão ligeiro no trinta e um, que só dá pra recordar a cor quando se acorda o ano novo, e tu sentes na bochecha a umidade de um beijo que quer te lembrar, só quer te ensinar a fugir da mesmice. Dezembro foge da mesmice.

quarta-feira, novembro 29, 2006

Reino dos sonhos

Por enquanto, o sonho ainda reina. José, sentado em uma pedra mais anatômica ri do que vê. Sentiu-se cansado e nem deu explicações, só um telefonema. Dava tempo ainda e foi. O mar era a resposta que procurava, mas isso só revelou-se nas pedras. No caminho, no ônibus, só seguia o que, por alguma razão, era o correto. A praia era sua e já era tardinha. O vento marinho cheirando a frescor, a falta de problemas, gelava. Enconstou-se como podia, cobriu-se com seu terno e dormiu tranqüilo. Ali, ninguém acharia José.

quinta-feira, novembro 23, 2006

Redenção

Um para cada lado foi como seguiram depois da despedida. Roberto foi enfático, mas não queria aquilo. Foi um blefe. Achou que quando Vanessa sentisse que realmente teria coragem de terminar com tudo, tomaria tento da realidade e desistiria daquela idéia idiota de separação.


Passara duas semanas de cão. Demorou para entender o que Vanessa queria. Começou reclamando de qualquer erro dele, coisas que sempre fez agora eram motivo de reprovação imediata. O pessoal do trabalho já estava comentando. Comia pouco, não falava, estavam estranhando seu mau humor. Mas bem que a Doutora Fernanda e a estagiária dela entenderam direitinho o que estava acontecendo e já botavam as asinhas de fora. Olhavam-no como duas raposas caçando: olhares vorazes. Roberto não se preocupou com isto. Não naquelas semanas em que aquilo que via crescer desmoronava. Quando ele finalmente resolveu questionar como ela agia de maneira estranha, Vanessa desconversou – Ai, não é nada. Que mania de sempre achar que é alguma coisa. Só tô cansada, trabalhei prá caralho hoje – mas estava estranha. Estava estranha, mas desconversava, e foi o que lhe deu forças para blefar no momento fatídico.

Tá acontecendo ou não? Coisa estranha, absurda, sem importância, cretina. E o telefone não toca. Não toca e não adianta ficar olhando para ele. Bobagem. Primeiro, é como o mundo caindo, depois, como se tudo fosse se resolver num estalo, num clique. Será? Puta merda, parece que esperou eu me convencer, isso não se faz. Gosto porque não tenho? Mas tenho ainda. Não sei. Preciso descobrir a palavra mágica, sei que existe. Vou dizer e tudo vai voltar ao normal, ninguém vai mais tocar no assunto, vai me abraçar, me beijar, e vamos sorrir. Que que eu fiz, porra? Que merda será que eu fiz? Ou não fiz. Alguém fez... caralho, puta que pariu, isso não. Que merda. Vou pressionar. Mas não vou ligar. Vou esperar, deixar. Não vai se agüentar e vai me ligar. Ou mandar mensagem. Aí sim, aí vai ver, vou tirar isso a limpo.

A ligação não fora esclarecedora. Ela não confessou nada, pelo contrário. Negou e disse que nunca o trairia, que o amava. Aquilo deixou Roberto mais puto do que nunca. Como assim amava, caralho? Quem ama gosta, quer estar junto, quer conversar, tocar. Ela comportava-se de maneira diametralmente oposta. Como ele sentia sinceridade no seu tom de voz, a única conclusão lógica a que podia chegar é de que era um trouxa muito fácil de ser enganado. Quantas vezes já teria sido crédulo desta maneira? Todos os fatos apontando para um lado, mas uma explicação combinada de uma voz arrependida o levavam a acreditar no absurdo. Despediram-se e foi dormir bravo com sua estupidez.

“E aí, que que deu?” foi a primeira coisa que Vinícius lhe perguntou pela manhã, no cafezinho. O seu, grande e amargo, o dele, doce. Tomavam o primeiro ali, ao lado da cafeteira e levavam o próximo para suas mesas. Não deu nada, conversamos durante um bom tempo, mas ainda não sei o que que houve direito. Ela tá confusa. “Toma uma atitude então, rapá. Diz pra ela que ou dá ou desce. Ou vai prum puteiro curtir a fossa, hahaha. Pode não resolver o teu problema, mas pelo menos tu comeu alguém.”
Não é preciso dizer que a conversa não ajudou e que o trabalho não rendeu como deveria mais uma vez. Pelo menos estava emagrecendo. Sentia o vazio no estômago cada vez que pensava na vida de solteiro. Aquilo dava medo. Será que conseguiria sobreviver naquele mundo novo? Teria que conhecer gente, refazer agenda, uma sucessão de primeiros encontros, mesmos papos, mesmos fins de semana naqueles lugares com aquele monte de gente otária. Voltaria a ser um deles, mais uma vez. Não queria, mas Vanessa que colocou nas mãos dele. Estava decidido.

Roberto blefou. Foi ele quem disse, com todas as letras, que tinha acabado. Não era palhaço para ficar passando por aquilo. Não era palhaço, mas deu alguns passos e virou-se, esperando o arrependimento. Vanessa continuou caminhando, não titubeou. Ele ficou assistindo ela chegar ao chafariz antes de desistir e continuar caminhando na direção oposta. Ela era bonita e não teria dificuldades de achar um novo namorado. Ele sabia que ela gostava dele e que não acharia fácil a separação. Mas tremeu quando ela não virou para a última olhada. Já não tinha tanta certeza de que ela voltaria para seus braços.

Vanessa agüentou firme até o carro. Entrou, colocou a chave na ignição e desabou em choro. Não sabia se era aquilo que queria, nem se não era. Não queria nenhuma alternativa possível. Só gostou de ele ter dito, nunca teria feito sozinha.

LOVE

quarta-feira, novembro 22, 2006

sabe chorar de alegria?
lágrimas lilás
de um jacarandá
bem no meio da rua

terça-feira, novembro 21, 2006

;-)

Recebo uma boa notícia e me quedo feliz. Esqueci do resto do dia e pintei um novo com as cores dessa voz. As janelas que me circundam guardam um azul que pressente um verão. Há de vir em breve. Por enquanto, silencio um sorriso entre parênteses.

O Problema do Oligopólio no Voto em Sistemas Multipartidários

Governos de coalizão são formados para fugir do dilema que surge quando nenhum partido sozinho recebe apoio da maioria dos eleitores. Mas, quando os eleitores percebem que serão governados por uma coalizão, um efeito de realimentação ocorre e muda a natureza do voto.
Os eleitores racionais não votarão mais no seu partido ou candidato preferido; ao invés, levarão em conta as possíveis coalizões que surgiram devido à distribuição dispersa dos votos dos demais eleitores. Assim, a decisão do eleitor racional passa a depender de como ele pensa que os demais eleitores votarão: as eleições se tornam jogos, com os eleitores buscando estratégias mais favoráveis através da análise dos possíveis passos uns dos outros.
Anthony Downs, Uma Teoria Econômica da Democracia, clássicos 15, edusp, 1999, p. 170-171.

sexta-feira, novembro 17, 2006

Milton Friedman

Morreu o economista Milton Friedman. Fundador da Escola de Chicago, ganhador do prêmio Nobel de economia de 1976 e da medalha John Bates Clark de 1951. Sua contribuição foi inestimável ao advogar sobre a importância da quantidade de moeda como instrumento de política governamental e como determinante dos cíclos de negócios e da inflação, e também para o refinamento da função de consumo, através da hipótese da renda permanente.
Foi responsável, juntamente com Friedrich von Hayek pela revitalização das teorias econômicas liberais na segunda metade do século XX. Nos anos 1970 e 80, contribuiu para a aplicação dos princípios liberais em diversos países como Estados Unidos, Inglaterra e Chile.

quarta-feira, novembro 15, 2006

Outro Engano

Não tenta falar de amor
Com quem não se importa
Cantando baixinho, sussuro
Amordaçado, carente

Emenda sonho e dor
Fala depressa, inventa
Renega carinho, orgulho
Engole o choro num soluço

Deixa de lado, vem
Vem sem pressa, meu bem
Foi-se embora mais um ano
Ano que vem, outro engano

Fala passando a mão
Quero carinho compassado
Vou me fazer de coitado, e depois
deixar marcada a dentadas

E depois tudo de volta
Atarantado, que cena!
Sem cortejo, choro, nem vela
Mudo, calo, e tu consentes

Tentaste e eu te avisei
Tem coisa que não vale a pena
Passar por trouxa não paga
O gosto da sinceridade

Deixa de lado, vem
Vem sem pressa, meu bem
Foi-se embora mais um ano
Ano que vem, outro engano

terça-feira, novembro 14, 2006

É simples

Heard Somebody Say
Devendra Banhart

I heard somebody say
That the war ended today
But everyone knows it's goin' still

Our motherlands and motherseas
Here's what we believe
It's simple
We don't want to kill

I heard somebody say
That the war ended today
But everyone knows its goin' still

Our motherlands and motherseas
Here's what we believe
It's simple
We don't want to kill

Oh, it's simple
We don't want to kill
Oh, it's simple
We don't want to kill
Oh, it's simple

segunda-feira, novembro 13, 2006

Resgate

Pouca trégua deram as tempestades na última estação. Era a terra secar e já caíam mais dois metros de água. Doze ilhas submergiram, outras doze se formaram. Tivemos que construir pontes improvisadas. Nada fácil plantar assim, nesses terrenos sofridos - a semente custa pegar vida. Foi preciso investir nos mais altos terrenos, pra recomeçar. Trocar as árvores caídas por um verde baixo. Não fosse a matéria orgânica a dar fertilidade teríamos saído do zero. Mas a terra conhece nossa história, sabe onde e com que força estão entrelaçadas nossas raízes. Elevamos nosso solo, e de istmo em istmo, buscamos nossas ilhas. Conquistamos um continente, que só nós poderíamos resgatar. Somente amar atravessa certos mares. E há mares que vem pro bem.

Verde

Amadurecer é deixar de se comunicar estritamente com o umbigo.

sexta-feira, novembro 10, 2006

Otimizando


Correto, certo, fechado. Como planos tangenciando no ponto certo, uma formiga neoclássica vaga entre as dimensões. Imaginando bolas abertas, que delimitam fronteiras sem nunca chegarem perto o suficiente, escolhem o ponto ótimo, aquele no qual estão mais próximas da fronteira. A todas essas, as cordas vibrantes compõem formas de Calabi-Yau, e a formiga sente-se a vontade, em um mundo que não compreenderíamos, e onde, certamente, iríamos pirar, por não compreender. Afinal, se o papel não comporta, como podemos admitir que existe?

quinta-feira, novembro 09, 2006

Nadar

O mundo inteiro me chacoalha: ânsia e angústia me respiram. Cápsula. Giro. Imagino um ar - tento parar. Mas o tempo me foge, o movimento me trai: prevejo um vômito. A garganta é a casa da angústia. E o vazio, a morada da ânsia. Não sei engolir: vomitar. O mundo inteiro me chacoalha. Perco o chão. Ou ganho o ar. Fica mais nada, do espaço que perdi, do tempo que ganhei. Antevejo uma liberdade que não sei.

Verdade

Contei a estória ao contrário, para evitar maiores sustos. Tudo explicado de tim-tim por tim-tim, que surpresas não me estavam programadas.
Mas me enganei no resultado. Contando ele primeiro, acabei por evitar os rompantes, mas arranjei os porquês. Que bela sarna me arranjei, ninguém esperou o último deles, já queriam saber do primeiro.
Eu não gosto do alvoroço, e isto já deve ter ficado claro. Pois dele não me livrei e, agora, ainda tinha que agüentá-lo do avesso.

terça-feira, novembro 07, 2006

Avesso e diverso

posso muito bem ser avesso
ou ser bem diverso e também desconversar
- ser ave de gesso

posso alçar vôo só num verso lento
um verso devagar de momento
divagar sobre uma nuvem de sentir
ou passar veloz submerso em mim
posso até um que outro divertir
por este ou por aquele fim

bem mais difícil seria divergir
deste outro que me é sem eu ser
deste que é diverso ao meu verso de rimar
deste que se constrói sobre palavras
aversões desassentadas de suas terras

bem mais difícil seria dissecar o espírito ora difuso
enxugar essas letras úmidas de mergulho raso
declinar deste impulso que toma ares alheios
pousar bem no meio deste signo que indica o tesouro

poder não ter certas contradições
mas as contradições certas
poder perder a voz mas não a vez
ser um paradoxo flexível
com loucuras de embriagar
e asas de também repousar

poder até usar a rima
assim, como lazer
poder dizer por cima do pescoço
eu não sou de gesso
escolher que poder mereço

A prática

As ações são muito mais sinceras do que as palavras.

Scudéry, Madeleine

terça-feira, outubro 31, 2006

Volta

Meus medos. Gostaria de perdê-los. Sei lá, esquecer no cinema, entre as pipocas que me escapassem, deixar, distraído, no meio de um livro grosso de uma biblioteca distante. Ou, melhor seria que os perdesse à beira do Atlântico, submersos na impermanência das dunas, para que quando a maré subisse, à noite, o mar dissolvesse todo resquício de minha insegurança, o sal corroesse o mais férreo dos meus receios. Meus medos me estacionam, me paralisam. Mas não de modos primitivos ou grosseiros. Meus medos me inibem com pormenores finos, quase educados. De maneira que por pouco não convenço a todos de que se não obtive progresso aqui ou acolá foi porque a escolha mais acertada era mesmo calar, era mesmo não ir, era mesmo não fazer caso. E, pior, convenci a mim mesmo, inúmeras vezes, de que minha inação era exemplo de minha sobriedade, de meu bom-senso. A vitória do meu pensamento sobre minhas paixões. Até ares de intelectual ganhei no espelho - um pouco de vaidade ajuda quando faltam convicções. Todavia, muito secretamente, coisa que não aparecia nem como sombra nas minhas pupilas contraídas, eu desaparecia dentro de mim. Nos meus medos foi onde me perdi. Ao me impedir sistematicamente de aparecer, eles foram me desaparecendo, seqüestrando minha respiração, bebendo meu sangue: ganhando meus ares, sendo meu corpo. Tremo e tenho minhas unhas roídas, todas. Não sei o que me livrou de uma asma. De minha memória, meus medos me concedem poucas lembranças, e, ainda assim, por meio de um processo burocrático: protocolos, carimbos, concessões e censuras. Ainda me escapam suspiros transgressores, mas, porque têm de se esconder, planejam uma revolução com tanto cuidado, tanta lentidão, que o ímpeto dissipa-se, o fôlego extravia-se num emaranhado de senhas desconexas. Senhores de mim, meus medos me governam cada dia com mais petulância, ceifam-me o passado como se fosse uma erva daninha, promulgam-me um futuro de perspectivas limitadas. São ditadores os meus medos. Uma droga. Os desgraçados viciam. Contei quarenta e oito horas em que escapei de suas vontades, em dois dias quase inteiramente dormidos. E o sonho tem sido o lugar praticamente exclusivo, se os sonhos fossem praticamente, em que eu digo o que penso e até sem pensar, vou aonde quero e até sem saber, sou – sou! – sem deixar de ser. Acordo. E não me surpreende o desacordo entre meu sonho e minha prisão. Por algum motivo - ora, sabemos, são os medos - esqueço o sonho e risco mais um dia na parede. Um pássaro me vem à janela. Escrevo notícias de mim para o mundo, que enrolo e amarro às suas patas frágeis. Vôo um vôo de um pássaro que não sei por onde vai passar. E a minha liberdade conta os dias no reverso de meus dias, na tentativa de encontrar-me na véspera de meus medos.

segunda-feira, outubro 30, 2006

Já voltei e volto a repetir, mas minto por ironia ou compaixão, tanto faz. O que não faz é admitir de vez para logo encerrar. Cerro dentes e olho pro lado, tonto. Melhor assim do que o olho no olho, embaraço e obrigação. Não fazia antes, não é do meu feitio agora. Se me importa abrir uma fresta, não faz pouco em escancarar por completa. O problema é princípio, no final importam os meios.
Atitudes deliberadas levam a conseqüências inesperadas. Compras, contas, erros e monstros, livros bizarros. À luz de idéias, fogo de mel e encantos de bundas, tudo misturado no mesmo caldeirão espiralando como num desenho animado e borbulhando céu afora.
Apaga.

4 minicontos

Porque era ela, era ele.
Sentia-se um palhaço. Doía-lhe a espinha. Fazia-o de bobo com sua prepotência. Ousada, apontava no seu nariz: vergonha. Enfadava-lhe aparecer. Talvez fosse mesmo a sua alma contida naquele pus retido.

O destino de quem é transparente.
Não tinha jeito. E aquele andar coisa-de-louco. Curvou-se em reverência natural. Ela passou cega e apressada como se percorresse a própria mão. Fez cócegas na dele. Estaria traçada na linha da vida.

Da última geração.
Tudo que tinha era pressa. Destino ou decisão, o que viesse primeiro. Não tinha dados ou dor. Muito menos a sorte de um amor. Fosse um computador! Mas era só a pressa. Peça do tempo sobre a ausência.

Réquiem para um desencontro.
O violão não ouviu a voz da luz. Sentiu o calor esticar suas cordas, silenciosa tortura expandindo seu corpo. O último grito veio em seis notas trágicas que o fogo rebentou. A lâmpada explodiu de dó.

quarta-feira, outubro 25, 2006

Dicas de um passageiro

Los Hermanos estarão (com Mombojó) dias 16 e 17 no salão de Atos da UFRGS e vai dar pra entrar por R$ 7,50, te liga. E outra, a Feira do Livro de Porto alegre, que começa nesta sexta-feira, está cheia de oficinas bacanas, entre outras programações.

Perderão aqueles que deixarem pra depois.

terça-feira, outubro 24, 2006

Estou ocupado no momento. Enquanto aguardam, sugiro que acessem os links ao lado, altamente por nós recomendados. Não posso me comprometer quanto a isto, mas, creio que meu colega Rômulo Arbo continuará com suas sempre brilhantes contribuições.

Obrigado

Felipe Maciel

sexta-feira, outubro 20, 2006

terça-feira, outubro 17, 2006

Passaporte

dá saudade
de ver-te
desconhecendo

passar por ti
teus olhos e através
fronteira

linda
imaginar tua língua
detrás de teus lábios
que me silenciam canto
de sorriso

dá saudade
reconhecer-te
só de sonho

cruzar na rua a ponte
numa tarde demorada
passar-me despreocupada
com brisas de volver quem é

Desktop

Clama-se pela necessidade de novas fontes e portos, proclama-se que navegar é preciso. O pombo correio não pára de ir e vir com mensagens de boas novas, em uma centena de línguas. O rei já não se sente confortável em seu trono de descansar, confia mais é em ninguém. Aflitos, dois eunucos suicidam-se bem na sua frente. Impaciente, um nobre organiza um golpe. Mas se descuida e pega um vírus que põe fim aos seus planos. Um jovem de 11 anos dá risada num ponto remoto do reino.

www.malvados.com.br

segunda-feira, outubro 16, 2006

Nem sei se

Não, não chores não
por mim
eu fico um pouco mais
aquém do que imaginou
além do que sorriu

Nem de graça vou
voltar
é o que sonhei
prá ti que declinou
prá quem mais eu menti

Chora
Não
Por mim

Chora
Não
Por mim

Sim tu te entregou
prá mim
foi só tesão
prá quem se enganou
sabendo que partiu

Sinto, te entregou
prá mim
não serve não
por que não esperou
saber o que eu senti

Chora
Não
Por mim

Chora
Não
Por mim

quarta-feira, outubro 11, 2006

GIz para Renato

E mesmo sem te ver
Acho até que estou indo bem
Só apareço, por assim dizer,
Quando convém
Aparecer ou quando quero.

Desenho toda a calçada
Acaba o giz, tem tijolo de construção
Eu rabisco o sol que a chuva apagou

Quero que saibas que me lembro
Queria até que pudesses me ver
És parte ainda do que me faz forte
E, p’rá ser honesto,
Só um pouquinho infeliz.

Mas tudo bem
Tudo bem
Tudo bem

Lá vem lá vem lá vem
De novo:
Acho que estou gostando de alguém

E é de ti que não me esquecerei.

[giz, renato russo]

terça-feira, outubro 10, 2006

O Sul de Borges
Quando um dia ensolarado começa pesado, sei que não melhora mais. Há dias estou assim e sei que é o excesso de compromissos. Não é o dia que está assim, sou eu. É café preto engolido às pressas, no estômago vazio, digerindo notícias lidas no mesmo ritmo, lidas para que não pareça um idiota para o primeiro idiota que encontrar. Na porta do elevador, me lembro das chaves do carro e volto. Em cima do armário, mesmo lugar de sempre. Aproveito para tomar um copo d'água e para pegar um disco para escutar no caminho. Baden Powell, o trânsito é o tempo que me dou para escutar música, coisa cara para mim. Cara, mas que andou perdendo espaço para outras, talvez mais urgentes. Luxo é elástico.
No carro, pego a direita, e o Fim Da Linha mistura-se com a lembrança de uma Ipiranga cheia. Gosto das ruas de Porto Alegre, das árvores, do clima provinciano, menos caótico. O ar condicionado, os vidros fechados, a música, tudo isso não me deixa voltar realmente para cá. Falta o mormaço, a falta de vontade hoje tem outras razões. Estranho preocupar-me com o trânsito de Porto Alegre, tendo vivido São Paulo. Viver São Paulo significa horas nos deslocamentos. É sair uma hora antes do compromisso para descobrir que um acidente parou tudo, e todos sabem que isto acontece, e ninguém quer saber, porque deveria ter saído duas horas antes.
Engraçado como o pessoal espantou-se quando disse que voltaria para cá. Não sofri seqüestro relâmpago e nem assalto, por que deixar Sampa? É claro que nunca ganharei aqui o que ganharia lá. O que eles não entendem é exatamente isto aqui. Árvores no bairro, poder tirar o pé. Mas eu não tirei o suficiente. Na garagem, vejo que tenho dez minutos para chegar ao escritório, o dobro do necessário.
Toca o telefone. É o Bruno? Não é do feitio dele ligar a essa hora da manhã.

Olhos de Édipo

"[...] Tomas acompanhava esse debate (como dez milhões de tchecos), e acreditava que haveria certamente entre os comunistas alguns que não eram assim tão ignorantes (deviam pelo menos ter ouvido falar dos horrores que tinham acontecido, e que não paravam de acontecer na Rússia pós-revolucionária). Mas é provável que a maior parte deles não soubesse de nada.
E ele dizia para si mesmo que o problem a fundamental não era: sabiam ou não sabiam? Mas: seriam inocentes apenas porque não sabiam? Um imbecil sentado no trono estaria isento de toda responsabilidade somente plo fato de ser um imbecil?
[...]
Nesse ponto Tomas se lembrou da história de Édipo. Édipo não sabia que dormia com sua própria mãe, e, no entanto, quando compreendeu o que tinha acontecido, nem por isso se sentiu inocente. Não pôde suportar a visão da infelicidade provocada por sua ignorância, furou os olhos e, cego para sempre, partiu de Tebas. [...]"

{A insustentável leveza do ser, quinta parte, capítulo 2 - Milan Kundera}

sexta-feira, outubro 06, 2006

Grovska (1)

- Grovska, disse ao acordar. Não fez caso, mas, dada a circunstância, nem era mesmo de se fazer. Tinha dias em que punha as meias do avesso, outros em que escovava os dentes com a escova de Bruna, uns em que simplesmente desligava o despertador achando, talvez, tratar-se de um mosquito desses que ousam incomodar uma boa noite de sono. Ou seja, acostumara-se a vestir a consciência somente depois de bem ter dado o nó na gravata, último movimento antes de pegar as chaves e sair de casa. Quem sabe fosse a senha de seu despertar o barulhinho das chaves entrechocando-se como se revelassem seus sonhos com urgência, antes que eles evaporassem feito água.

Esquentou água pro café pensando, exatamente, em que haveria sonhado. Acordara com uma sensação estranha, que de estranha passou a inexplicável quando olhou pro relógio e, incrédulo, constatou que pela primeira vez no ano havia se antecipado à hora de levantar, que no seu caso era sete e trinta. Que coisa. O microondas apitou. Conseguiu capturar imagens e sensações menos escorregadias: bonecas, país estrangeiro, pressa. Enrugou a testa. Do quarto veio soar o despertador. Sete e trinta informava a voz doce de sua namorada, e cada vez menos doce alertava, até vir o berro histérico e chato numa voz quase masculina, muito da maleducada. Foi desligar. O microondas voltou a apitar. O dia prometia e a promessa era nada agradável. Grovska. Grovska? Enrugou a testa. Estranho. Admitiu que ainda sonambulava. Tomou um gole do café. Esquecera do açúcar. Voltou a pensar nas bonecas. Não eram de pano, soube que sabia naquele instante. Eram duras, talvez frias, pintadas. E com pressa. As bonecas é que tinham pressa. Não só elas, ele também, todos. Talvez os perseguissem. Tinha uma ponte. Tomou mais um gole, balançou a cabeça, foi pôr açúcar. Três colheres de chá. Atravessavam a ponte, talvez fugissem do país estrangeiro, ou para ele. Desconhecia aqueles homens, por que o perseguiam? E, que diabos, bonecas?! Pela primeira vez no dia sorriu. Pensou na namorada, ela sorria na foto sobre a mesa, virou-se para contemplá-la. A essa hora estaria em algum daqueles cafés de Roma, ela adorava café. Eles. Tomou o último gole. Heitor veio esfregar-se em suas pernas. Era o gato. Querendo comer, certamente, e com muita razão. Miou. Gostou de ouvir algum som afetuoso. Acariciou os pêlos de Heitor. Macios. Heitor parecia gostar, presumia-se um sorriso. Pensou na namorada novamente, desta vez teve a sensação de senti-la. Macia. Heitor miava agora repetidamente. Será que quer comer? Foi ver se achava aquela ração, mas não lembrou onde Bruna dissera que guardava. Teve uma idéia fabulosa: pegou um pires, pôs leite. Heitor enrugou a testa. Por um breve instante ambos miraram o leite. E slept, slept, slept, soou a pequena língua de Heitor esvaziando o pires com sua pequena língua. Esvaziou. Ficou olhando pro gato, o gato pra ele. Definitivamente Heitor não estava satisfeito. Lembrou que ontem não havia lhe dado nada do que comer, ou... beber. Talvez nem anteontem, será? Foi buscar no armário um prato de sopa.

Foi quando contemplava com interesse e espanto a cena do alvo Heitor de bigodes leitosos dando conta do segundo prato fundo que tocou o telefone. Absorto, apercebeu-se só no sétimo toque, quando o gato deu-se por satisfeito aparentemente. Foi atender.

Grovska?

Heitor enrugou a testa.

quinta-feira, outubro 05, 2006

Sem sentido significa correr pelas pedras da pouco perspicaz alvorada para aos poucos rangir dentes no asfalto ensangüentado. De abril correm moinhos que gelam ao tempo de comadres. Na sombra ou ao largo, choram bombachas e tremem seus sóis, pois sois sentado na primeira de todas. Clapem pelo jugo, meus entes, pois pelados foram quase todos, e argumento que sequer senti.
Entrou de repente e pedalou o máximo que pôde com ânsia de lacrimar. Ao próximo destacou e mesmo de posse rugiu para o lençol. Pouco sacana, mas assomou de pronto e, dueto, sorriu com a bizarrice do comparsa.
- Forte pasto metal
- Aquece na mente que bóia carrega de pronto, e sonho padece exaurido
- Mas fronte que passa é garrafa silêncio
- Noturna se muito, prefiro galega
Passava de bote e tempo de mato. Arfante começo de fina planura, que segue e soga mas deixa atalho. De dois ou três voltava ao mesmo e luz forçando não livra de beiços. A torta malhada se gritou baixinho, molhando invejas de quarta zunindo.
- Não para de rir e pensa que voa
- Se penso ou dispenso, revogo de fé
- Mas carta é só, e espaço corrente
- Fico tenente que logo me sano
Tristeza surgiu, da risada do outro. Nuvem deixando a sala, e música voltando ao ouvido. Em torno, cansaço e sorrisos. Na mesa, garrafa pela metade, ainda dá mais um gole, que segue embalando o rumo. Pouco de versos que enrolam um pouso, mas de cordas a mente se volta. A cabeça já pensa sozinha, já pode pegar de volta as rédeas. Ainda volteia, mas olha em volta e vê a baderna. Mas tem tempo, amanhã se preocupa em arrumar as coisas da viagem.

quarta-feira, outubro 04, 2006

Olhos nos Olhos

Independente do que sentia, não podia continuar com aquilo. Sabia que seria difícil, mas logo logo passaria. Sempre passa.
Vítor saiu de casa com a cabeça feita. Já tinha uma boa desculpa e preferia fazer direto, sem rodeios. Machucar de uma única vez, que nem injeção. A enfermeira chamava sua atenção para uma ilusão ou um brinquedo, qualquer coisa. Quando se dava por conta, já tinha sofrido a vacina, tudo acabara, só restava um fundo gelado de picada, que logo desaparecia. Faria assim, melhor prá todos.
Ele amava Roberta, e isto não podia negar. Passaram bons momentos juntos, davam-se bem. Tinham gostos parecidos, não tinham problemas para ir ao cinema ou escutar música, eram prazerosos seus diálogos. Mas, ela era fresca. Era isso, e ele não admitia tal coisa. Churrasco, tinha que levar picanha e queijinho, no qual os amigos, não só por gula, mas por implicância justificada, atracavam-se sem pudores. Não acampava e peixe tinha que ser com grife: linguado ou salmão. Se fosse seu amigo, certamente seria implacável na arriação.
Ao entrar no carro, sentiu-se mal. Era medo. Igual a quando correu do cachorro do seu Anselmo, com todos torcendo por ele do outro lado do portão, ou quando deu-se conta de que o pai não ficaria mais curado, que era somente uma questão de tempo. Os membros não respondem, o estômago embrulha, o suor é frio. Calmou, pensou novamente e lembrou de todos os argumentos que já tinha usado para se convencer. Girou a chave e seguiu seu caminho. Trocar o Cd. Led Zeppelin não combina com seu momento. The Cure. Filho da puta apressado, não pode esperar? Não era isso que queria pro momento, não essa melancolia. Precisa de outra. Que que será que quer? Stones não, definitivamente. Chico! Era isso, perfeito para todas as ocasiões onde há mulher na jogada. Puta, tá amarelo, vou ou paro? Caralho! Travou
...

Dor, arde, puta que o pariu, ahhhhhh, merda, que que é isso? Tá louco? Embrulho no estômago. Vontade de vomitar. Doi, muito frio.

...

Não andar? Melhor morrer? Puta merda meu. Um segundo e isso? É assim? Cadeira de rodas, depender dos outros. Vai ser assim? Paraplégico. Caralho de som do carro. Custava prestar atenção, merda. Foder, nunca mais?! Puta que o pariu. Ninguém mais vai me querer. Vou ficar sozinho pro resto da minha vida. Acabou a minha vida. A Roberta, será que ela vai continuar comigo?

Primavera

Esperava mais de um dia tão bonito. Como mais não viria espontaneamente, tratou de providenciar na marra.

terça-feira, outubro 03, 2006

Eus poéticos

as pessoas dizem de tudo
mas o pessoa diz como poucos
e disse, do poeta, fingir dor
mesmo a dor que deveras sente

pessoalmente, digo mais
não só finge como dita
ditador
e o que lhe causa a poesia
leitor
é a agonia de tua liberdade
grita ela sobre cada verso
num universo paralelo

não havendo poética impessoal
não há obrigações com ética
ou revelações altruístas
cada verso e toda estrofe
é para uma pessoa só e implícita

segunda-feira, outubro 02, 2006

Caminhou durante bom tempo pela estrada. Muito tempo para dizer a verdade, não estava acostumado. O chão batido, pedras soltas parecia não ter mais fim, mas a paisagem era agradável, não podia negar. Pelo menos os tucanos, dois, que nem importaram-se com sua presença, foram um espetáculo a parte. Soltos, lindos, misturando-se aos vários tons de verde do mato vizinho.
Estranho experimentar situação tão pacificadora na situação em que se encontrava. O corpo doía muito, precisava respirar devagar, filhos da puta. Mas não era provável estar muito longe da vila, não tinha passado tanto tempo dentro do carro. Será que dormira? Aquele jagunço de merda não brigou limpo. Não que tivesse vencido de outra maneira, nunca foi um brigador. Sempre foi melhor na conversa, e mais de uma vez achou conveniente voltar prá casa com o orgulho avariado, mas com os dentes no lugar. Filhinho de papai fiadasputa. Botando banca, botando marra. Pisando firme no salão só porque é filho do homem. Caralho. Quer um harém prá ele? Quem que pensa? Não ia baixar a cabeça, nem a pau.
Finalmente, depois de horas caminhando (na verdade, não tinha muita noção de tempo, sem relógio, celular, ficava completamente perdido) avistou uma cabana. Casebre. Longe da estrada. Finalmente, ajuda, água para a sede e para o corpo. Ainda não era um telefone, não havia fios por perto.
Será que pega celular por aqui? Acho brabo. Assim que der jeito, volto lá e aqueles merdas me pagam. Tudo preso. Acham que são donos do mundo? Acham que aquele fim de mundo é o mundo. Não perdem por esperar.
Na casa, o cachorro ladra, mas o guri vem prender. Chama pelo pai, que andava por perto. A velha vem acudir, que o homem tá pisado. Deitam ele e providenciam um de comer. Mas, o que que, ainda que mal lhe pergunte, o que que houve ao senhor...?
Marcos, professor do colégio no Rolantezinho. Me desculpa a falta de educação, com a confusão, não me dei por conta e não me apresentei. Pois foi que teve baile ontem, no salão do Bola. Fui conhecer, que sou professor, mas não tenho senhora. Quando o baile já tava acontecendo, resolvi conversar com uma moça, bem simpática, Ana Cecília, e chamei prá dançar. Foi quando Zé Túlio, filho do prefeito veio tirar as caras. Parece que tinha interesses na moça. Mas, como ele já tava de gracejo por uma, se rindo todo, resolvi argumentar que não tava fazendo mal algum em conversar com Ana Cecília. Não tive nem tempo de escolher baixar a cabeça ou comprar briga. Surgiu um bronco de porrete na mão, nem sei de onde, e sentou o sarrafo. Apanhei que nem cachorro. Protegi a cara e güentei. Depois que caí, mais de um bateu, mas nem vi quantos. O senhor veja a safadeza das pessoas, como tem gente que não vale nada nesse mundo.
Ficou um silêncio. A mulher ficou quieta, o capiau ficou quieto. Nem o cachorro latiu. Pediu desculpa, mas que eu pegasse rumo.

Esquisofrenia curada

A partir de Hume (1741-42) e Smith (1776), surgiu a visão, amplamente difundida nas ciências econômicas, de que a maior parte das pessoas age perseguindo seu próprio interesse ao invés do interesse público. Enquanto isto, as ciências políticas continuaram assumindo que os agentes políticos estavam principalmente preocupados com a busca do interesse público. De acordo com essa visão, o indivíduo que compra e vende itens no mercado, agindo de maneira egoísta ao buscar a maximização de seu bem estar, muda o seu comportamento no momento de uma eleição, votando em políticos e leis que, ao invés de beneficiá-lo, beneficiam a nação como um todo, ou, ao tornar-se um político, toma decisões moralmente corretas ao invés de comportar-se privilegiando grupos de interesse que o financiam ou apoiando políticas que o levarão a reeleição. O que a teoria da escolha pública faz é dispensar a dicotomia entre um homem econômico e um homem político, passando a considerar que os indivíduos engajados em atividades de mercado e em atividades políticas agem sob as mesmas motivações em ambos os casos.

sexta-feira, setembro 29, 2006

Pesquisa, só informal

Uma coisa que entendo mais atrapalhar que colaborar são as pesquisas de intenções de voto. Simplesmente porque as pessoas são ou tentadas a votar em quem teoricamente a maioria votará ou naquele que tem virtuais chances de disputar o segundo turno com este candidato. Isso fez com que uma colega minha dissesse que não vai votar no Cristovam Buarque porque ele "tem apenas 2%". Sou a favor de que se proíba a publicação de pesquisas de intenção de voto. Alguma medida tem que concorrer contra a ignorância do eleitor.

E já que estamos no tema, este é o resultado parcial da Primeira Pesquisa Diversa e Avessa:

Lula - 0%. Sem chance; quiçá no eventual segundo-turno; quiçá.
Heloísa Helena - 0%. Era a segunda opção, quase fui com ela.
Cristovam Buarque - 100%.
Geraldo Alckimin - 0%.

Entrevistados: um.

Desregras

Alguém acredita na extinção completa da corrupção? No desaparecimento de modos ilícitos de cooptação de votos? No fim dos discursos retóricos e demagogos? Talvez um otimista, diriam - eu digo mal informado. É irracional ou utópico pensarmos num processo democrático livre de todos os ruídos e desvios a que está submetido. Mas certamente algumas regras podem ser implantadas para tornar o voto individual representação de interesses cada vez menos suscetíveis a tendências externas operando por conveniência. Está claro que, na medida em que o eleitor precisa de alguma forma tomar conhecimento sobre os concorrentes, a informação que até ele chegar inevitavelmente passará por meios distantes da imparcialidade. Aliás, ainda crê alguém neste mito?

Parece menos pior, ou mais justo, deixar à sorte o egoísmo inerente às pessoas do que o egoísmo criado em laboratório e disseminado de maneiras silenciosas a berrantes. É verdade que alguns mecanismos já existem nesse sentido - temos o voto confidencial, pra citar o exemplo mais sedimentado, temos o boca-de-urna proibido, para citar o que é sempre notícia nos jornais. Mas quantas alterações seriam bem-vindas! Quantas são urgentes! O aperfeiçoamento do jogo eleitoral é medida não tratada nos nossos plenários. Não à toa, temos visto não outra coisa senão o abuso do poder, a impunidade, o apadrinhamento, a infidelidade partidária e o descaramento dos políticos.

Os eleitores viram peças fáceis em um jogo de regras insuficientes. A esfera política afasta-se da sociedade enquanto dá a falsa aparência de que tem o povo o poder de julgar os fatos que a perfazem. Falsa aparência! São tão somente os ditos representantes do próprio jogo político que fazem seu julgamento - o problema é que são, naturalmente, muito tolerantes consigo mesmos. Óbvio que, com esse sistema desregrado, tudo caminha para massa, molho de tomate, queijo, orégano e outros ingredientes menos comestíveis.

quinta-feira, setembro 28, 2006

Preso Espelho

Testo com toques teu tom
Tento teu beijo forçando teus olhos a me namorar
Encanto um motivo, um motivo de rima.

Caio no espelho, fico preso
Tonto teus olhos me chamam para nadar
Olhando-me sorriso, sonhado.

Não, não conheço o caminho
Ali me fico, ali me farto
Tanto teso quanto gozo
Tanto gozo como gozas.

Prende, passas e retinas
Torto, trago à tona um suspiro
Sustentando notas sem rosto
Eu, tinta mancha no teu quarto.

Minicontos

Dia Noite

Escureceu a manhã, da nuvem de tempestade. Tudo escuro, feio, que medo. Com poucas palavras, meu amor, soprou tudo para longe, fez-se novamente o dia.

Dando Atenção

Noite tarde, estrada pela frente. O caminho ficou curto com tua atenção. Baixo a guarda e quase que o carro desgoverna estrada afora.

De Dedo em Riste

Desempregado e desgraçado na cidadezinha, não tinha mais nada a perder. E não teve dúvidas, olhou para o homem e disse:- Ôoo sêo prefeito, o senhô vá tomar bem no meio do seu cú!

Escapou

Era muito cedo para pedir desculpas. Ainda podia defender-se que nem homem, mentindo.

quarta-feira, setembro 27, 2006

Noutro 27 de 9

Descobri porque escrevo. Acabei de ler, ali nas paredes textuais da Fabico: o papel aceita tudo. Não é uma justificativa admirável. Mas é a que parece mais plausível agora. Em terreno onde me é difícil a expressão - e o julgamento faz parte do jogo - me calo, silencio. As palavras escritas me livram do silêncio absoluto. Talvez eu mesmo seja meu juiz mais severo: decretei prisão a uma vida paralela, enclausurada em linhas. Linhas de escape. Pareço fora de lugar: meu crime, minha sentença e minha fuga ocupam o mesmo espaço. Por algum motivo inventei um mundo sem porta de saída. Talvez nem seja mais metáfora eu procurar aqui uma saída de emergência. Vejo claramente a escuridão de meu dilema - não será tarefa fácil. De cara já me deparo com a vergonha de publicar o que soa estranhamente como auto-traição. Mas por que publicar? Para que os outros devem conhecer meu desespero em voltar à superfície? Maneira vaidosa essa de pedir ajuda, como se só o fizesse para bem representar o papel de vítima:

Culpado. Por algum motivo, culpado. Bem sei eu que esta pena em minhas mãos é que escreverá a seqüência dessa história. estive mostrando minha face sombria, como um planeta dentro da noite. sabotagem foi a grande cratera que cavei no solo pedregoso. Engulo esse amargo vazio enquanto teço meu plano de busca. se o construísse organizadamente deveria começar por uma investigação. Minha doçura parece estar transparentemente diluída. Todavia ainda a sinto. Naufraguei-me e tenho que procurar o colete em noite de lua nova.

terça-feira, setembro 26, 2006

Singela homenagem de um admirador

o nome secreta a virtude
(predicado nominal)
diria até que secreta a verdade
não fosse o internacional

sujeito luis
substantivo de um camões
da flor última do Lácio
pétalas de faz-me-rir

verbo fernando
(mas bem intencionado)
humor sutil soprando
de um sax afinado

não qualquer adjetivo:
é de respeito
o predicativo
do sujeito

posto merecido
(issimo de elevado)
Verissimo,
Verissimo, abençoado!

*completa setenta anos hoje.

Mário Quintana

"E nunca me perguntes o assunto de um poema: um poema sempre fala de outra coisa."
"Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro."

segunda-feira, setembro 25, 2006

Tardinha de primavera

Marcelo chegou cansado e tomou seu banho bem demorado, coisa que ele vinha pensando durante todo o trajeto do ônibus. Não pôde ler seu livro hoje, não conseguira assento. Tudo bem, afinal, não é sempre que consegue dar férias prá cabeça. Ligou a água para o chimas e foi cortar as unhas. Escolheu uma revista que pensa que não vai querer ler tão cedo para aparar as aparas, e abriu em uma página que chamava atenção, para distraí-lo enquanto fazia sua manicure. Quando terminava a primeira unha da segunda mão (sempre começava pela mão esquerda e ia do polegar ao mínimo de cada mão) tocou a campainha. Estranhou já que não esperava ninguém, mas também não deu ao assunto grandes importâncias. Ao olhar pelo olho mágico as pernas ficaram bambas e o terror tomou conta dele por inteiro: como ficara sabendo de seu paradeiro?

sexta-feira, setembro 22, 2006

Num Baile

Enquanto isto, no baile das palavras, o salão estava animado. Coisa bonita de se ver. Junção animada, formando cada frase que dava gosto. Tinha de tudo, verbos intransitivos, substantivos, nomes próprios, adjetivos que qualificavam o lugar. Daí, se pode imaginar a poesia que se formava naquele ambiente.
Pois foi quando chegou um palavrão com seu bando. Palavras de baixo calão, sem dúvidas. Coisa triste, colocaram um ponto final em tudo.

Ainda da série de links...

Do Millôr.

Dança das Palavras

Machado, olhou para o relógio e achou que já era hora de parar. Bloqueou seu computador, verificou sua carteira, organizou os papéis que lhe auxiliavam em sua tarefa, levantou-se de sua cadeira, dirigiu-se até a porta, abriu-a e saiu da sala. Ao passar pelo corredor que o levaria à escada, sempre usava a escada, cumprimentou os colegas com um até mais geral. Abriu metade da porta que levava às escadas, passou meio corpo, e voltou. Um gole d'água não iria mal naquele instante. Estava gelada. Voltou à porta, agora completamente.
Dali começava. Aos poucos, ainda alerta com a possibilidade de encontrar algum conhecido interessado em assuntar. Elas vêm, uma por uma, primeiro baixinho, soltas. Ao ganhar a rua, o sol bonito e morno, presente numa manhã de inverno, atiça as idéias, que não fazem mais cerimônia. Uma segue à outra, atropelam-se e gritam. As mais felizes riem, querem compartilhar. Outras, mais pesadas, mais sérias e sizudas, sentam-se num canto, solitárias, mas sua presença soturna marca, é constante, um bumbo, um baixo.
Descendo em direção ao centro, Guaíba à vista, rostos estranhos na contramão, os pares começam a se formar. Engraçado, pensamentos lógicos e objetivos, observações do entorno continuam, mas o abstrato não cede, pelo contrário, frases mais voluntariosas, já formadas, tomam a frente e fazem-se notar, indo e vindo, indo e vindo, vindo e ficando e tomando conta, marcando seu espaço. Porto, portas, uma amor distante ou a lembrança fresca, não importa. Machado olha seu relógio, ainda tem uma hora, e daí? A passo, volta para o prédio, para sua baia. Sabe que só tem um jeito deles pararem, e é prendendo os mais salientes para servirem de exemplo aos demais. Seu computador já está cheio deles e ele se sente aliviado.
Amanhã tem mais.

quinta-feira, setembro 21, 2006

Socialismo

... um fator significante no apoio popular ao socialismo através dos séculos tem sido a fé de que a mudança de uma atividade do escopo da escolha privada para o da escolha pública envolve a substituição do motivo do ganho privado pelo do bem comum.
James Buchanan e Gordon Tullock - The Calculus of Consent (1962, p. 19)

segunda-feira, setembro 18, 2006

Guimarães Rosa - Sagarana - Minha Gente

-Queria perguntar uma coisa...
-Pergunte, Maria irma.
-Não. Não sou curiosa.
-Então, eu sei o que é...
-Então?
-É a respeito... Bem, é sobre... Você quer saber se eu deixei algum amor, a esperar por mim?
-Se deixou, ou não, não me interessa...
-Então, por que você quis perguntar, prima?
-E por que foi que você adivinhou a pergunta, primo?

***
Não
Me conta como foi
Não
Quero saber se sim
Não
Quero saber se
Não

Se não
pensas que vai ser igual
Não
se güentas em guardar só prá ti


senão é melhor do que
sim
é melhor do que
não

Não
Faz a conta do que tá prá vir
Não
Alimenta o monstro em mim
Não
Aproveita que eu me perdi

Sim
Tô muito por ti
Se não
faço muito por nós

Por fim
Só me resta entender
Que não
Disseste que sim
talvez
melhor esquecer

sábado, setembro 16, 2006

Maré subiu

A maré volta sim
Perdi o medo e deixei me levar
Prá onde, diabos?
Prum samba?

Pro fundo.
Não tem questão,
pode sair, pode ficar
eu vou até aí.

Num fim, final
num pouco, um canto
prá ela, um beijo
pro fim da rima.

Afogo, e dou risada.
Oceano em volta, tu
Ar não mais
Pulmão encharca de ti.

sexta-feira, setembro 15, 2006

La Omissión de la Familia Coleman

onde está você
onde vocês estão
sinto falta disso como era
mas agora é omissão

homens são de primavera
o resto é invenção
alguém quer passar frio
eu não

não sendo eu que me importa
se escalo nas tuas costas
e desfaço nossos laços

onde está você
onde vocês estão
sinto falta disso
como um dia ousara ser
mas não tem mais isso não

eu omisso
talvez seja até vício
mas aqui não tem irmão
fomos todos concebidos
não seremos redimidos
encontrando por que mão

eu que digo pronde vou
e se te quero comigo
e é quase um perigo
dividir contigo um pão

sou mais eu, sou mais meu
sai da minha pista
que eu sou mais egoísta

(mas a peça é um primor)

Quiçá sejamos peixes

de dentro ouço sua voz
a escorrer do céu
dos sonhos que se derramam pelo mundo
me busca num pedaço de papel
e me escreve de água

a tinta deste outro que não sou
escapa da verdade que me luz
e a transparência que me mar
me veste d'alma viva que ficou
e me cobre de água

eu corro, eu corro, eu corro pra buscar
e gota atrás de outra traz a força
que me corre desta apatia
que me morre nesta ilusão
e me impele àgua

ah chuva, me acha, vai
que eu corro pro tempo vir
aquele tempo de existir
que me molha de mim

ah chuva, me olha, vem
que eu tô pra achar o meu bem
e a vida há de secar
bem longe daqui

quinta-feira, setembro 14, 2006

Macaquinhos no sótão

Felipe Maciel diz:
Bubbles are cool

. : FêCris : . we've been living life inside a bubble diz:
yes!!!
. : FêCris : . we've been living life inside a bubble diz:
very very
. : FêCris : . we've been living life inside a bubble diz:
mas podem não ser também...as pessoas todas lá, te olhando...

Felipe Maciel diz:
A minha bolha é opaca

. : FêCris : . we've been living life inside a bubble diz:
haahaha mas daí tu vê o teu próprio reflexo dentro

Felipe Maciel diz:
Isto não é problema... o pior é que os pequenos macacos que vivem dentro da minha cabeça são paranóicos e odeiam bolhas

. : FêCris : . we've been living life inside a bubble diz:
bah.... acho que o problema daí não é eles odiarem e sim eles existirem!

Felipe Maciel diz:
Sim! E eles berram
Felipe Maciel diz:
Não é muito bom prá trabalhar...

. : FêCris : . we've been living life inside a bubble diz:
nem pra dormir, imagino...

Felipe Maciel diz:
Não tem problema. Temos horários parecidos...
Felipe Maciel diz:
Eu tive que me adaptar

quarta-feira, setembro 13, 2006

Love, don't go!

quase amargou
mas amar não vai, assim,
do nada, mais

vem o doce
traz bem aqui
na ponta pra mim

não engole
o amor não se toma de gole
amargou, deixa pra trás

quase esqueci
mas amar não é de se esquecer
(isso é pro resto)
o amor esquecido é indigesto

Breathe - Pink Floyd

Tom: Em

Intro:

Em A A4

C Bm F7M G D7(#9) D7(b9)

Em A A4 A
Breathe, breathe in the air
Em A A4 A
Don’t be afraid to care
Em A A4 A
Leave but don’t leave me
Em A A4 A
Look around and choose your own ground
C
For long you live and high you fly
Bm
And smiles you’ll give and tears you’ll cry
F7M
And all you touch and all you see
G D7(#9) D7(b9)
Is all your life will ever be


Em A A4 A
Run, run rabbit run
Em A A4 A
Dig that hole, forget the sun,
Em A A4 A
And when at last the work is done
Em A A4 A
Don’t sit down it’s time to start another one
C
For long you live and high you fly
Bm
But only if you ride the tide
F7M
And balanced on the biggest wave
G D7(#9) D7(b9) Em
You race toward an early grave

Mar do Silêncio



Nalma duns bate estrondo,
estrondo de mar.
É aguada caindo,
que parar não pode.

E divide por metades,
por seu lado cada uma vai.

Doutros pára,
fica na quietude.
É chuvisco sereno,
sem tempana amostra.

E divide por metades,
que vão sem anunciar.

Seguem
fluxos,
cada
qual
por
si.

E
quem sabe?
lá na frente,
tropicando,

bate mar, bate paz,
fica tudo misturado...

segunda-feira, setembro 11, 2006

Nem queiram saber

Enquanto isto, não muito longe dali, a consciência pesa. Desnorteado, me lembro fidedignamente de episódios que nunca existiram, mas que trazem o conforto de confortarem. Contar uma estória, tentar entrar para a história, nem que seja na de alguém com quem não preciso conversar.
Fumaça e fogo nos céus da serra, ou do vale. Ou me engano em escolher qual história quero fazer parte. Isso não se escolhe, se vive, mas sou teimoso o suficiente para querer escolher a minha. Subir ao topo é fácil, difícil é querer ficar lá. Bom, desisto.
É... parece que é
Mas, se aconteceu,
fazer o quê?

Melhor falar,
e depois,
deixar acontecer.

Mesmo porque
engolir é pior
deixar mal resolvido...

Teorias existem
para serem refutadas
por novas evidências
Que nem imaginávamos

Doido, doído
medo sem lugar
Porque é bom
Porque não sabe onde colocar.

Assusta sim,
também não sei
Só sei que está
dentro de mim.
Ah, se a Lady Mercado cuidasse de perto seus filhos! Mas ela está sempre ocupada com essa vida de negócios. A Oferta, por exemplo, não anda comendo direito, talvez esteja com anemia até. A Demanda, (nem parecem irmãs gêmeas!), beira a obesidade. Deve comer do prato da outra. Ah, se a Lady Mercado não deixasse tudo por conta da babá ou dos avós. A babá tem a didática de um Pinochet; os avós, partidários do laissez-faire. Em que confusão crescem essas crianças! E a Lady Mercado não sabe a metade. Quando escapa da correria vai pro salão de beleza. Pra desestressar.

das vidas

a vida é um resquício de morte, um resquício de chão
é um caminho pro norte
e um pouquinho de me dá a mão

é quase desprovida de sorte
e comumente invadida por paixão

a vida voa, até se pilota
pede que numa língua sejas poliglota

a vida é brisa, avisa até
pede numa boa não sejas um qualquer

a vida é um resquício de morte, um resquício de não
uma força que não chega a ser forte
que não chega a ter sempre razão

a vida passa, até devagar
estremece quando acorda de um cochilo
e depois corre como pra recuperar

a vida é por isso desordem
é até furacão
a vida é daqueles mordem
para além da refeição

é para além
(como disse frederico)
do bem e do mal
é lugar paradisíaco
e ao mesmo tempo infernal

a vida é o homem só
e o que há de Deus em si
o resquício, o pó
e o vestígio de uma alma
que, calma, sorri

das mortes

se eu fosse ter que fazer
tudo antes de morrer
que vida eu teria?
só de fato seria...
sério, é de morrer
é de correr pro cemitério
uma vida feita assim
sem mistério

se eu fosse ter que dizer
tudo depois de aprender
a falar
eu teria meia vida a haver
meia a reclamar
partir da morte do nascer
como a sombra d'arte
que sustenta o viver

se eu fosse ter
na vida
tudo que houvesse pra ter
teria devida a vida não ida
a vida de graça, a de ser
a de não ser suicida
a saber

domingo, setembro 10, 2006

Apressando
o passo,
mas ainda buscando a direção correta.

Previsto apenas
uma risada que fica quieta,
por dentro,
não externa.

Senta com calma,
seguro,
mas só na casca,
e começa de novo.

Volta um pouquinho,
prá não se perder.
Quero resolver logo,
prá logo começar.

Num momento desses,
fica até chato duvidar.
Antes disso, duvidam de mim,
mas mostro logo as garras.

Num bestiário de idéias,
todas tímidas,
vindo em pequenas doses,
sendo soltas quando ninguém presta atenção,
volto aos poucos prá retomar a rotina.

Incerto
é
que nem sempre vem na hora
certa.

Não
é quando eu quero,
mas
é quando eu posso.

sexta-feira, setembro 08, 2006

Noutras sextas-feiras



O cortador

A demissão em massa, naturalmente, produzirá uma grande oferta de trabalho. Mas o que parece não estar incluso nas fórmulas econômicas é o que o "capital humano" está disposto a realizar para entrar novamente em circulação. Le Couperet, filme de Costa-Gavras, mostra uma forma bem simples encontrada por Bruno Davert (José Garcia) para reingressar no mercado de trabalho: matar, um por um, seus concorrentes diretos. A imagem vira suspense tanto pelo modo como a história é contada pelo diretor, como pela proximidade com a realidade, que provoca uma aflição crescente, uma angústia ao presenciar um jogo que se joga sozinho e com regras desvinculadas de qualquer sentido de bem coletivo. O capitalismo corta, às vezes de maneiras silenciosas, as mais legítimas relações entre os homens. E ficamos pensando até que ponto elas eram legítimas.

*Le Couperet, "o cortador", foi traduzido aqui para O Corte.

quarta-feira, setembro 06, 2006

falar falar falar
pra se encher de razão?
vôo aflito
sobre a proximidade
é de ar ou é de vidro
essa transparência?
e esse vento contra,
cortar ou sustentar?

planos planam
tangenciam-se, curvam
e no sobrevôo
sou ponto, sou reta?

e se caio
abaixo do eixo
deixo de voar
sobre
passo à constância
da instância
de deixar
de ser

terça-feira, setembro 05, 2006

Por que escrever se eu posso cantar?

A Economia da Mentira

O fato de que mentiras são propagadas afeta o comportamento dos consumidores de informação. Isto significa que é mais difícil melhorar a exatidão de seus julgamentos quando algumas das informações por eles examinadas podem estar sendo desenhadas para enganar. Essencialmente, isto significa que o custo marginal de uma unidade extra de capacidade de julgamento é maior agora. Se a existência de mentiras no conjunto informacional disponível levará a mais ou menos tempo alocado em "pesquisa" sobre o assunto em questão, depende da elasticidade da demanda do consumidor por capacidade de julgamento.
Entretanto, a maior parte dos consumidores de informação não está engajada em um processo racional de tentar elevar a acurácia de sua decisão. Eles estão simplesmente pegando a informação porque eles obtém satisfação com isto. Se a informação inventada satisfizer mais o seus gostos do que a verdade, eles sentir-se-ão motivados a aumentar o seu consumo. Como é mais fácil inventar mentiras para satisfazer o gosto do público do que achar verdades que o façam, a introdução na mídia de histórias "interessantes" mas inverídicas sobre política pode aumentar as vendas.
Gordon Tullock (1967). The Economics of Lying, p. 143.

segunda-feira, setembro 04, 2006

Mesmo sem nada planejado, as coisas não corriam como o previsto. Ainda assim, a boa vontade, fruto talvez da lembrança de outros carnavais, imperava sobre as adversidades impostas pela natureza e pelo egoísmo. Risadas e álcool são capazes de tornar tudo mais leve e a tragédia iminente intimida-se pelo pouco caso com que é recebida.
Na troca de cenário, um frio e uma idéia, que leva embora os maus agouros, e deixa uma sensação de consumado. Tudo escuro, barulho, fumaça. No topo, uma armadilha traiçoeira, esperando por novas vítimas, ou por alguém que a use como trunfo. No meio do barulho, silêncio, tudo para para que se encontrem o menino dos olhos brilhantes e a menina do sorriso bonito. No instante seguinte, volta o barulho, volta a fumaça, voltam os movimentos. Não se conheciam, mas estavam lá para se encontrarem.
Tanta coisa prá falar que é melhor eu ficar quieto.

sexta-feira, setembro 01, 2006

Um dia em preto e branco pode ser pesado, triste. Mas é charmoso.

Afogando-me em uma nuvem, sem saber para que lado seguir, pode ser bem penoso equilibrar-se aqui. O vapor d'água é tão denso, mas não como as nuvens que vejo lá de baixo. Não é macio, branco e aconchegante. Como frio e úmido são correlacionados, tudo branco e molhado. A respiração volta, mas só quando eu quero, e, se não quero, me bate uma angústia sem controle, me debato até que meus pulmões não me obedecem mais e respiram sem minha permissão. Que engraçado! Converso com um cachorro na falta de companhia, mas ele não é capaz de me escutar. Ocupado, com certeza. O som do silêncio está por todos os lados, tentando resistir ao barulho de meus sapatos. Urinar é preciso, ainda que em qualquer lugar vago. Não me cabe julgar os desejos do meu corpo, mas pela quantidade, eu já devia ter tomado esta providência faz tempo, mas não consigo prestar atenção em tudo ao mesmo tempo. Passo em passo, os passos se suscedem e suscedem-se os passos, um de cada vez, o direito e o esquerdo, um após o outro após o um após o outro após o um, sucessivamente. Tantas vezes se sucedem que chego à porta. Uma chave prá uma fechadura, uma única combinação de ranhuras no metal que permite o acesso a quem a possuir. Uma única, e esse é o problema, são tantas e tão parecidas, e se multiplicam e trocam de lugar. A muito custo, o silêncio já é passado que os passos ganham companhia no outro extremo que não vejo pois a nuvem insiste. E de novo outras chaves e de novo outras chaves. O enjôo gira tudo não dá prá fechar o barulho não rápido gira e que nojo abraçado mais água não faz barulho e girando.


quinta-feira, agosto 31, 2006

samba de voltar

Ah! Se a gente soubesse
Que a gente não esquece

Ah! Se a gente soubesse
Que a gente não esquece

Depois que acabou é que a gente lembra
Depois que acabou é que a gente lembra

foi-se o tempo e eu não vi
que era muito de vagar
era muito de deixar
o tempo gabar-se de si

foi-se-me o dom de ir
donde fosse meu esmero
perdi a razão de existir
pondo a história no cemitério

Ah! Se a gente soubesse
Que a gente não esquece

Ah! Se a gente soubesse
Que a gente não esquece

Depois que acabou é que a gente lembra
Depois que acabou é que a gente lembra

queria ter não tem mais
queria ser mas já não foi
o que era somente é saudade
e não tem um só remédio
que me desconte idade
me retire desse tédio

como era antigamente
tudo assim tão diferente
mais parece só agora
que quase sinto o cheiro
de antes do triste embora
desse tempo de primeiro

Ah! Se a gente soubesse
Que a gente não esquece

Ah! Se a gente soubesse
Que a gente não esquece

Depois que acabou é que a gente lembra
Depois que acabou é que a gente lembra

Se a vida soubesse
que a gente não esquece
faria um relógio gigante
de ponteiros-estandarte
que despertasse no instante
de um momento-eternidade

Ah! Se a gente soubesse
Que a gente não esquece

Ah! Se a gente soubesse
Que a gente não esquece

Depois que acabou é que a gente lembra
Depois que acabou é que a gente lembra
Corre,
e na fuga deixa
cairem todos os teus segredos
esparramados pelo chão.

Fica parado
Estático, feito um guri
cagado, esperando
um castigo.

Volta
e junta
todos, feito homem
um por um.

Olha prá eles,
mostra prá todos
perde a vergonha.
Eu já me dei conta do que estou prestes a fazer?

quarta-feira, agosto 30, 2006

Ilustrando

Foto: José Luis Anapolski


Cisplatina

Após a decepção da partida cancelada, a notícia de última hora de que iria. Pouco tempo depois, tudo ameaçado novamente. A falta de preparativos parecia botar tudo por água abaixo, assim como estava a cidade de Porto Alegre naquele dia. Mas foi abaixo d'água mesmo que a falta de preparativos nos deu mais 2 dias. Sairiamos em 8 horas, tudo muito rápido, correndo, intenso.
Uma noite de pouco sono. Excitação, novidade, ignorância. Na manhã, o desembarque. Caminhar para conhecer. Força e perseverança na andança não planejada. O ar morno do paradouro nos recebeu, mas a curiosidade que a cidade nos proporcionava venceu. E voltamos ao vento.
Num país de carnívoros, fogo por todos os lados, pirotecnia gaudéria encarregando-se de aguçar nosso apetite. A saciedade do corpo não é a da alma. Imagens sendo aprisionadas com avidez e outras fomes, de outras carnes, nos levando para frente.
Novas amizades, por certo efêmeras, mas nem por isto não aproveitadas colocam-se. Novidades, curiosidades do que se conhece apenas pelas percepções de outros. Por fim, o cansaço vence.
Num outro dia, mais amizades, estas prometendo instalar-se, trazem novos ares, novas caras, novas idéias e um novo rumo. Andanças, mais carne, mais álcool. Frio, escuro, encontros, desencontros. Saudosismo do que não se viveu. Hasta mañana.
Consumir, consumar. Andar, conhecer, voltar e beber. As chamas que nunca apagam-se chamam para com elas ficar. Mas nem por isso ficamos. Teimosos, não querendo dar ao tempo um minuto de nosso tempo, preferimos a insônia voluntária. Boas supresas saxônicas. Frio, estupidez, uma triste mas justificada imagem do Brasil. Fome, desejo, repulsa, Led Zeppelin, satisfação, cama.
Tarefas e trabalho. O sentimento de dever e de perseverança é capaz de atiçar o mais relutante fogo. Teimosia reconhecida e diversão. Risos em tantos idiomas. Sexo, carros, frutas, cabras. Sorrisos lindos que não compreenderam que poderiam ser mais felizes em companhia de outros sorrisos. La noche. A escócia porteña. Culturas tão diferentes, desejos tão desencontrados. Impotência, libido desarmada pela inocência. Separação, solidão. O cansaço vence. Será?
No clima de despedida, o sol brinda com a possibilidade de mais sorrisos. Sorrisos que deixam saudade, pois sabe-se que nunca mais serão vistos novamente, a não ser que o destino, que todos sabemos não existir, queira pregar uma peça boa. Estafa e a sensação do que ainda está por vir.
Melancolia tão portenha e tão guaíba. Uma noite separa duas cidades capitais. Gaúchos as descobrem tão semelhantes.