sábado, março 31, 2007

Quem sabe, amanhã

Mais do que isso, queria possuir um corpo como um animal. E lembrava dela assim mesmo, com vontade, como uma oportunidade para liberar sua mais estranha energia, que mandava nele de maneira incompreensível. Ela era três, uma a cada momento. Agora era fêmea, e tinha se escondido. Ele precisava achá-la, era a única que correspondia a suas investidas. Ela já esteve em instituições psiquiátricas e de vez em quando, nas vezes em que a fome aperta, recorre aos albergues. Esses lugares são difíceis para homens. Tem que estar sempre de olho aberto. Um invejoso, um ladrão, qualquer coisa. Por nada se dá o acontecido. Para mulher não. O pessoal se passa, mas Anabela não se importa, gosta e ganha mimos dos companheiros de noite, como se estivesse fazendo algum favor para eles.

Depois que a encontrava, e se conseguia resolver-se, ela virava um fardo. Ela mudava, e ele queria distância, que se escafedesse de uma vez. Ficava rude com a moça, coitada. Fazia pouco caso, xingava e mandava para longe. Às vezes ela ia, resmungando palavrões desconexos e alternando gritos que escandalizavam quem estivesse ao seu alcance. Cada um ia feder pro seu lado. Anabela desaparecia por dias e com o passar do tempo, quando as vontades voltavam, ele se arrependia. Na verdade, arrepender não é o termo exato. Não tinha noção do mal que tinha feito, não assimilava a culpa. Passado um bom par de dias, suas ações passadas se confundiam, e não discernia se ontem era o dia em que conseguira cachaça ou se fora sua prova de cálculo. Mas penava pela sua falta, de qualquer maneira.

Mas outras vezes Anabela não tomava o rumo. Agüentava as carraspanas e os maltratos no osso do peito, e permanecia por volta. Ela era um cachorrinho que, não sabe bem por que, mas deve obediência a seu dono. Mesmo sob fogo cerrado, permanece fiel, e prefere não se afastar. Nestas ocasiões, ele esquecia do sentimento de asco que o dominava, e, antes da vontade animal voltar a reinar, uma outra forma de relação toma lugar. Uma cumplicidade toma conta. Eles se entendem, admiram o céu ou o parque, aceitam e aprovam a companhia. Quase sem palavras, vivem por breves momentos, uma vida em comum.

quinta-feira, março 29, 2007

À luz do poder

Se aquele homem tinha seu caminho desenhado pelas árvores, não viemos nós todos também sendo mais direcionados do que diretores? Nos enquadramos em tantas fronteiras das quais não temos ciência, que soa quase utópico falar em verdadeira liberdade, quem dirá a generalizada.

Se, por um lado, a liberdade não é concedida por quaisquer tipos de ditaduras, por outro, ela tampouco parece estar dada, de maneira natural. Sendo pragmático, a liberdade parece não ter lugar nesse mundo, ainda que a pregação e a instituição do individualismo suponham o contrário. O poder não deixa sombras.

quarta-feira, março 28, 2007

A ditadura acaba onde começa a verdadeira liberdade do homem.

Nunca a manhã

Cruzou o grande parque com trajetos sonambulantes, as árvores desenhando seu caminho. Tinha nelas os únicos sinais de uma vida concreta, que desapareciam a cada curva.

Aquela manhã luzia entrecortada por algumas folhas caducas mais teimosas, e as sombras que projetavam não durariam outro amanhecer. O vazio explorava o espaço com seu facão aniquilador, abrindo tudo ao que o frio fazia nada, cada vez mais penetrante. O homem teimava em ficar de pé, sendo pedra fraca. Demorava-se na vez das árvores, como um cão, na ânsia de encontrar Anabela. O sol lhe concedia um sorriso inexpressivo, que nem chegava a ser amarelo. O mundo desfizera-se de som e, monocromático, era só um destempo que parecia divertir-se com a lenta decadência do homem. Era um passar que não passava, um presente duro, sem fim, tal qual uma fotografia triste que fedia como se fosse muito muito velha.

Mas, tão jovem quanto Anabela, sua morte havia começado nas frestas que seu orgulho fizera em seu viver. O derradeiro impulso, que o submetia ao jogo impiedoso da sobrevida, vinha não sabia donde, literalmente: não sabia. Era só ser, livre e decadente. Quisesse - pudesse querer - trocaria seu inútil livre arbítrio por um corpo de animal.

terça-feira, março 27, 2007

Alegre Manhã no Porto

Sorte e pontes, o cinza volta às ruas da cidade. Os trapos cobrem, mortos vivos, todos misturados, piolhos e pulgas, toda uma sociedade alimentando-se do asco, da umidade e de epitélios mortos. Abaixo deles, um corpo dá vida e energia a esta cultura que teima em enfrentar o frio que castiga já fazem dias, que chegou com vontade este ano e que não dá sinais de apatia. Os trapos, que ele chama de cobertor, não são suficientes para tornar a temperatura confortável. E mesmo que fossem, seu cheiro elimina qualquer possibilidade de aplicação da palavra conforto.
O desapego completo não veio da nobreza de espirito, veio antes da necessidade e orgulho. O costume anestesia. Já não importa atravancar a passagem, que desviem o olhar, que sua presença seja uma bolha de mau cheiro obstruindo a calçada. Foi-se o tempo que vivia da pena. Pedia, explicava, convencia a caridade com um olhar de fome, de desamparo. Agora espera o resto, as sobras de todos que não desistiram. Moedas não lhe são mais úteis, desde que não é mais permitida sua presença em um bar, um restaurante, uma venda. Antes de ser capaz de mostrar algum dinheiro, é convidado a se retirar, na melhor das hipóteses. Enxotado, com mais freqüência.

Apostou, há um bom tempo atrás, apostou alto. É o problema de mirar na cabeça, o prêmio é grande, mas não pode errar. Mirou e foi, mas não conseguiu. Quando olhou para trás, não tinha mais caminho de volta. Cabeça dura, não confessou o erro, não pediu penico. Cada passo à frente distancia mais a encruzilhada, agora resta esperar.

Loucura e sorte, sua história não poderia ser por ele contada. O tempo solitário, a febre, infecções e paranóias destruiram sua consciência. Duvido ser capaz de manter um diálogo inteligível. Mais certo soltar idéias sem nexo, flashes e ilusões, balbucios.

E assim acordou hoje, um pouco mais tarde do que o normal, porque o sol não veio fustigar seu rosto. Sorriu e sentiu o estômago. Precisava comer, sabia onde encontrar algum com o que enganar. A parte mais complicada é a madrugada. A vigília e o medo misturados com a febre que não deixa repousar. Não tinha nada que interessasse a alguém para ser tirado, mas ainda tinha seu corpo para doer. E sádicos existem. A surra que tomou certa vez não o deixa dormir, o mantém alerta. Repousava tranqüilo, ainda não conhecia as maldades escondidas na noite. Mal teve tempo de acordar e se proteger, chutaram-no sem piedade. Foram apenas alguns segundos, correram e ele ficou sangrando ali no chão. Nos dias seguintes a dor continuava a lembrar, e foi difícil dormir. Os outros dormem em bandos, melhor para se proteger. Mas não é um deles, nunca obteve permissão.

Com um mamão passado servindo de refeição, volta a seu mundo. Enrola-se em seu cobertor, seu reino, e lembra-se de Anabela, fazem dois dias que não aparece (não sabe disto com certeza, confunde-se freqüentemente). Quem sabe hoje tem a sorte de receber sua visita.

quarta-feira, março 21, 2007

Ao Pedro

Comprimidos não são resposta, mas há vezes que são solução.

segunda-feira, março 19, 2007

Arte


Teve um Pedro (versão comprimida para concurso)

O rodomoço desejou boa viagem. Verdade que o ônibus estava quase vazio: vindo do Rio, chegara em Porto Alegre com exatos 3 passageiros. Estes uniram-se a nós, 3 amigos, mochileiros de 1ª viagem, e rumamos ao Chile, país mais comprido do mundo. Não era menor a ansiedade: muito chão a percorrer entre a terra de Drummond e a pátria de Neruda. Mas haveria um Pedro no meio do caminho. Chamava-se Pedro o rodomoço. E passou a ser nosso guia.A Argentina nos deu as boas-vindas com infinitos girassóis, mas Pedro, chileno que era, não falaria de flores neste terreno. Chilenos têm rixa com argentinos, de guerras distantes. Sobraram piadas nesse trajeto. Só cessariam frente à imponência dos Andes – era mesmo de silenciar. Sentia-se a solidão dos primeiros exploradores. Na fronteira, paramos. Sem pensar, corremos à água que descia ao pé da montanha. Pedro impediu que a guarda chilena soltasse cachorros contra nós – era proibido. Desculpamo-nos com o fôlego que nos restara. Viria dos céus a resposta de Pedro, e, enquanto a neve caía, tivemos certeza de que o que vissem nossos olhos sobre o Chile, teria o olhar de Pedro, um eterno explorador. Poetizara Neruda, “o mundo era do ar que esperava”.

[Se não gostaste, vá em www.ci.com.br, em "Concurso Viajante CI", e vota neste texto, a fim de que eu ganhe de aniversário uma viagem de um mês pela Europa. Se gostaste, vota mais de uma vez. Os caras sempre conseguem deixar o processo burocrático, mas tu terás paciência, afinal, a Europa é logo ali, e a causa é nobre. Terás apenas que acessar teu imeio uma vez, o que é bem razoável visto a quantidade que tens feito isso diariamente. Muchas gracias, e conto contigo nesta saga. E é contigo mesmo, ainda que penses que, ah, certamente, ele deve estar falando com outra pessoa. ;P]

terça-feira, março 13, 2007

Obrigado

Fiquei muito ocupado e pensei,
tenho que dar prioridade às coisas sérias.

Pensamento seguinte:
quais são as coisas sérias?
As mais importantes?
as de gente grande?

Acho que minha divisão foi de acordo com a cobrança.
Minha,
de fora,
das expectativas,
não importa.

Sei de tudo isto,
e de que adianta?
Adianto sempre
Obrigações.

Piana

em branco e preto
piana a eternidade
sonora a mesma vida
na percussão de um dó
é sempre um sol
sem ida nem vinda

é de se amar
a tristeza do piano!
- órfã de nostalgia
ah, que lindo balbucia!
se os dedos malpousam

tudo é pleno, ao piano
ouçam,
é o amor sem plano nem reta
piana, letra não lida
porque a vida é analfabeta

pode bem versar lento
que vem avesso ao lamento, o piano,
ao arrepender
que só repete o fá que acertou
que não dá ré de mi que entortou
que redimir é letra lida
e a vida não tem sentido
senão cantada, senão sentida

chama,
é a vida
dá o tom, ama
- piana

quinta-feira, março 08, 2007

segredos

"Tudo que a mente do homem pode conceber, ela pode alcançar."
A frase, de W. Clement Stone, veio à minha cabeça, antes de conhecer sua procedência origianal, enquanto lia O discurso do método, de Descartes. Vim a conhecê-la no interessante documentário O Segredo.

terça-feira, março 06, 2007

Parque O'Higgins

rodavam crianças e jovens sobre patins
e as voltas que faziam
rodar também me fizeram

passos jogados pra trás:
retrocedo
outra vez te desconheço

então deslizas...
tua presença é nova
numa distante tarde chilena

Aí fudeu

Andou,
andou pensou
e parou.

Olhou para trás,
desconfiou
e andou.

Olhou de novo,
não parou
e medrou.

Sentiu
e não andou,
correu.

Correu sem olhar,
mas não deu,
no final das contas,
perdeu.

sexta-feira, março 02, 2007

A corrupção do sereno

e tendo a vez da palavra caído
de um dedo em riste direto no meu colo
disse:
escolham bem o seu vício

e todos calaram seus cochichos e abriram bem os olhos
a noite fez do silêncio meu eco, separou tanto quanto pôde minhas sílabas
bandeira nenhuma se ergüeu; entreolhares no palanque

mas a densidade deste segundo não expandiu seu comprimento
e no seguinte instante um bêbado discursou comicamente:
a multidão nem viu a poeira fina que pisava

e a noite desistiu daquela noite, o que é sempre muito muito triste

Uma verdade inconveniente

A Terra aquecerá e nós perderemos todos os cabelos.