quinta-feira, agosto 31, 2006

samba de voltar

Ah! Se a gente soubesse
Que a gente não esquece

Ah! Se a gente soubesse
Que a gente não esquece

Depois que acabou é que a gente lembra
Depois que acabou é que a gente lembra

foi-se o tempo e eu não vi
que era muito de vagar
era muito de deixar
o tempo gabar-se de si

foi-se-me o dom de ir
donde fosse meu esmero
perdi a razão de existir
pondo a história no cemitério

Ah! Se a gente soubesse
Que a gente não esquece

Ah! Se a gente soubesse
Que a gente não esquece

Depois que acabou é que a gente lembra
Depois que acabou é que a gente lembra

queria ter não tem mais
queria ser mas já não foi
o que era somente é saudade
e não tem um só remédio
que me desconte idade
me retire desse tédio

como era antigamente
tudo assim tão diferente
mais parece só agora
que quase sinto o cheiro
de antes do triste embora
desse tempo de primeiro

Ah! Se a gente soubesse
Que a gente não esquece

Ah! Se a gente soubesse
Que a gente não esquece

Depois que acabou é que a gente lembra
Depois que acabou é que a gente lembra

Se a vida soubesse
que a gente não esquece
faria um relógio gigante
de ponteiros-estandarte
que despertasse no instante
de um momento-eternidade

Ah! Se a gente soubesse
Que a gente não esquece

Ah! Se a gente soubesse
Que a gente não esquece

Depois que acabou é que a gente lembra
Depois que acabou é que a gente lembra
Corre,
e na fuga deixa
cairem todos os teus segredos
esparramados pelo chão.

Fica parado
Estático, feito um guri
cagado, esperando
um castigo.

Volta
e junta
todos, feito homem
um por um.

Olha prá eles,
mostra prá todos
perde a vergonha.
Eu já me dei conta do que estou prestes a fazer?

quarta-feira, agosto 30, 2006

Ilustrando

Foto: José Luis Anapolski


Cisplatina

Após a decepção da partida cancelada, a notícia de última hora de que iria. Pouco tempo depois, tudo ameaçado novamente. A falta de preparativos parecia botar tudo por água abaixo, assim como estava a cidade de Porto Alegre naquele dia. Mas foi abaixo d'água mesmo que a falta de preparativos nos deu mais 2 dias. Sairiamos em 8 horas, tudo muito rápido, correndo, intenso.
Uma noite de pouco sono. Excitação, novidade, ignorância. Na manhã, o desembarque. Caminhar para conhecer. Força e perseverança na andança não planejada. O ar morno do paradouro nos recebeu, mas a curiosidade que a cidade nos proporcionava venceu. E voltamos ao vento.
Num país de carnívoros, fogo por todos os lados, pirotecnia gaudéria encarregando-se de aguçar nosso apetite. A saciedade do corpo não é a da alma. Imagens sendo aprisionadas com avidez e outras fomes, de outras carnes, nos levando para frente.
Novas amizades, por certo efêmeras, mas nem por isto não aproveitadas colocam-se. Novidades, curiosidades do que se conhece apenas pelas percepções de outros. Por fim, o cansaço vence.
Num outro dia, mais amizades, estas prometendo instalar-se, trazem novos ares, novas caras, novas idéias e um novo rumo. Andanças, mais carne, mais álcool. Frio, escuro, encontros, desencontros. Saudosismo do que não se viveu. Hasta mañana.
Consumir, consumar. Andar, conhecer, voltar e beber. As chamas que nunca apagam-se chamam para com elas ficar. Mas nem por isso ficamos. Teimosos, não querendo dar ao tempo um minuto de nosso tempo, preferimos a insônia voluntária. Boas supresas saxônicas. Frio, estupidez, uma triste mas justificada imagem do Brasil. Fome, desejo, repulsa, Led Zeppelin, satisfação, cama.
Tarefas e trabalho. O sentimento de dever e de perseverança é capaz de atiçar o mais relutante fogo. Teimosia reconhecida e diversão. Risos em tantos idiomas. Sexo, carros, frutas, cabras. Sorrisos lindos que não compreenderam que poderiam ser mais felizes em companhia de outros sorrisos. La noche. A escócia porteña. Culturas tão diferentes, desejos tão desencontrados. Impotência, libido desarmada pela inocência. Separação, solidão. O cansaço vence. Será?
No clima de despedida, o sol brinda com a possibilidade de mais sorrisos. Sorrisos que deixam saudade, pois sabe-se que nunca mais serão vistos novamente, a não ser que o destino, que todos sabemos não existir, queira pregar uma peça boa. Estafa e a sensação do que ainda está por vir.
Melancolia tão portenha e tão guaíba. Uma noite separa duas cidades capitais. Gaúchos as descobrem tão semelhantes.

Política e comodidade

Só acreditar é mais fácil que prometer.

terça-feira, agosto 29, 2006

Sua primeira providência era tirar todos dali. Não queria sua família envolvida, eles não precisavam saber de nada... seria melhor para todo mundo. Ela não tinha o direito. Diabos, tinha sim, e ele esperava por aquele dia, sabia que chegaria.
Apesar da raiva e do medo que tomavam conta, a sutileza com que foi feito lhe dava um conforto estranho. Uma lembrança boa de Flávia. Todo o tempo que passaram juntos, não foi só sexo, e também não foi uma simples amizade, um simples namoro. Tinham um duelo permanente, estavam sempre desafiando um ao outro, sem nunca deixar isto claro. Eram desafios intelectuais ou morais cuja principal característica era exatamente que cada um se esmerava para que a afronta não fosse claramente percebida. Era um jogo de dissimulações, mas era antes uma disputa de egos. Quem tinha o senso de humor mais requintado, tão requintado que ninguém mais poderia perceber que ali havia humor. Admirava Flávia e sabia que era recíproco.
Precisava deixá-los em lugar seguro, iriam atrás dele com certeza, o que significava separação. Da esposa não tinha grandes problemas. Gostava dela, era uma boa pessoa e tinha consciência de que ela o amava. Mas separar-se dos pequenos seria um martírio. Notava em Israel as mesmas inquietações que sentia quando era um guri. Pensativo mas ao mesmo tempo dissimulado, ele não fazia perguntas. Não externava perguntas, bem entendido, aquele olhar vazio não enganava. Sozinho, era bem capaz de acabar como o pai.

Ao mesmo tempo, Israel sentia os olhos da coruja cada vez mais perto. A testa do pai estava suada, e ele preferiu ficar quieto. O pai não respondeu para onde iam. Não perguntou duas vezes, tinha aprendido que era melhor fingir que estava tudo bem. Ninguém gostava de fuxiqueiros. Ele não, pelo menos.

Estava enferrujado, não estava mais acostumado a estas fugas. A última tinha sido sua grande peça em Flávia. Claro que tinha todo o contexto da libertação, as cartas e tudo mais. Mas sabia que ela não deixaria barato, pregaria uma muito maior.

O primeiro carro cortou a frente deles. O segundo chegou logo em seguida, ninguém viu de onde surgiu. Saíram três homens com uniformes dos libertadores de cada um deles...


Acordou úmido e com frio, pelado no chão do box. Lembrou-se do escorregão e do momento de alívio. Estava com muito frio, mas a cabeça não doía. E tinha fome, muita fome. Quanto tempo passou deitado ali? A julgar por todas as memórias que tinha de depois do acidente, uma eternidade.

Sol em três por quatro

um retrato do sol
você pode olhar
demorado'lhar
e nem se queimar

molhar bem os olhos assim
como quem mergulha com
os olhos abertos
no mar
e ainda sem salgar
e ainda sem cegar

um retrato do sol
é quase sem
graça
não passa nada de luz
uma foto fria, opaca
tapa na cara de quem conduz
a câmera à procura de algo terno
não veremos assim
o que não sabemos é que é eterno

Entrevistando Chico

Este é um cara que admiro. Chico Buarque

segunda-feira, agosto 28, 2006

Com sorte, talvez ninguém o reconhecesse, ou, pelo menos, não alguém que fizesse caso com o contexto da foto. Mas era, definitivamente, um aviso, um último recado que pedia com urgência uma atitude. Mesmo a legenda estava cheia da perspicaz ironia de Flávia, dizendo tudo, quase sem dizer. Mas como, diabos, ela conseguira aquela foto? Olhou o retrovisor, sentindo-se vigiado e, depois, desprotegido, apesar de que, aparentemente, a rua estivesse deserta.

Israel não deixou de perceber a aflição calada do pai. De um certo modo, isso lhe acalmou um pouco. Afinal, não eram simples bobagens de criança aqueles sentimentos que lhe tomavam. Seu pai parecia ter mil segredos dentro de si, quem sabe colecionados ao longo da vida toda. Que ele, Israel, faria com os seus? O céu, as estrelas, a lua, todos confidentes que lhe entendiam como se parte dele fossem. Restava-lhe ainda uma vontade de que, não só que o ouvissem, respondessem às suas indagações ou ao menos compartilhassem seus mistérios de forma menos silenciosa.

A irmãzinha puxou seu cabelo, já estava virando costume. Antes que Israel revidasse de alguma forma, porque criança nunca deixa barato, a mãe interveio, falando firme com a caçula. A pequena Samira queria atenção, e a cabeça de Israel era a única ao seu alcance. Talvez mais alguns poucos anos e já pudessem conversar sobre isto de caminhar com as próprias pernas.
Não era exatamente uma notícia, era antes um aviso disfarçado na seção de variedades. Mas não havia dúvidas de que era ele.
Não havia mais volta. Tinha começado.

quinta-feira, agosto 24, 2006

Justificando o estudo das escolhas sociais

Deparamos-nos com processos de decisão coletiva em toda a parte. As sociedades precisam escolher quanto de seus recursos comuns deve ser alocado em estradas, na transferência de recursos dos mais abastados para os mais necessitados, ou para o pagamento de bolsas de estudo de pós-graduação. Para isto, alguma regra de decisão deve ser criada. Nas sociedades democráticas modernas, a maneira mais comum é que uma parte dos indivíduos da sociedade, chamados de eleitores, escolha um grupo de representantes encarregado de, sob determinadas regras pré-estabelecidas, fazer esta alocação. Nestas sociedades, tanto a escolha destes representantes como a alocação por estes efetuada costuma ser realizada através do voto. Mesmo em pequenos grupos, efetuamos escolhas que envolvem mais de um indivíduo: condomínios decidem se devem contratar um jardineiro ou pintar a fachada; clubes escolhem seus representantes; amigos escolhem se acompanharão o jantar com vinho, cerveja ou água. Enfim, as escolhas sociais são importantes em uma infinidade de aspectos de nossas vidas e uma boa parte delas envolve, implícita ou explicitamente, a existência de um sistema eleitoral. Quando se debate sobre a adequação de um sistema eleitoral, uma questão importante é a capacidade deste sistema de levar em consideração de maneira igual a escolha de cada indivíduo do grupo. Daí a importância do cálculo do poder de voto de cada eleitor e de cada colégio eleitoral, pois, dependendo das regras de votação utilizadas, os eleitores dentro de cada colégio eleitoral podem ter poderes diferentes para influenciar o resultado da eleição. Intuitivamente, em um sistema eleitoral justo, a preferência de cada eleitor deve ser igualmente levada em conta para a escolha social.

Os cestos

Dois cestos. Um é verde; outro, cinza. Isto porque têm um propósito: separar lixo seco e orgânico. O fim é louvável e a todos beneficia. No entanto, é sabido que necessários são a regulamentação, a ordem de execução e a fiscalização, em processos que contrariam a prática do caos. Em condições naturais, verifica-se com facilidade, conduzem-se a conclusões tipicamente desvinculadas de preocupações que envolvam conceitos mais elaborados, como a ética - salvo sociedades mais avançadas em âmbito educacional. Muito maior é a parcela das populações que seguem as leis primitivas,-para citar alguns exemplos-, do simples contornar dos obstáculos e das vontades, por vezes excêntricas, sempre centralizadoras, do ego.

Por tal realidade é que um é verde; outro, cinza. Como é verde o sinal permissivo do semáforo, lembrando que legal e moralmente aceito é contribuir para a convergência, quem sabe universalização, das necessidades. O homem precisa ser lembrado, mais quanto menos educado. Se bem que é difícil desligar da memória o processo através do qual alguém é educado.

O fato é que cada cesto tem a sua cor específica. Os usuários é que são das mais diversas. E é sobretudo de cada um que dependerá o sucesso da empreitada, ou a sua derrocada. Ainda que as regras estejam normativamente estabelecidas, mesmo que tenham sido transmitidas com clareza, a operação estará sujeita às atitudes das pessoas, nem sempre constantes ou determináveis, como sabemos. O mecanismo da fiscalização tem, sem dúvida, uma essencial função de solicitar maior responsabilidade dos usuários, parece claro, estando atrelada à aplicação de penalidades para os casos que infringirem o estabelecido.

É preciso lembrar (o homem precisa ser lembrado) que, em certas instâncias, essa fiscalização pode acarretar em comportamentos não-esperados, dependendo do modo que é empregada. Sob o jugo do autoritarismo, tendemos a buscar a subversão e o radicalismo, ou seja, a não-cooperação. Daí o cuidado que merece a prática da inspeção.

Mas as nossas cestas não são vigiadas. Foi concedida a nós plena liberdade de ação, ou, pelo menos, foi reservada aos meios do convívio interpessoal a direção do projeto.

Alguém soube que os funcionários encarregados de recolher o lixo estavam misturando tudo no final das contas. Outro, teve a mesma informação, mas avisou a chefia. O primeiro passou a desacreditar no processo por inteiro. O último confiou na ação da chefe e continuou colocando cada lixo no seu lugar.

Obviamente, aqui, o papel da chefia é muito decisivo. Porém, é igualmente importante perceber que, tendo esta feito sua parte, não há definitivamente certezas sobre as respostas dos outros agentes do processo. Na verdade, o que se pode antecipar, com alguma propriedade, é que um ato que leve ao caos desencadeia outros tantos. E o costume dá conta da perpetuação do atraso.
A mãe achou que tivesse mijado nas calças, o que não deixou de mencionar à mesa do café-da-manhã. Engoliu a vergonha com pão e leite, mais dificilmente porque era simulada. A irmã menor lançava-lhe um olhar incômodo. Lembrou-se da coruja - já não sabia se tinha sonhado com ela ou se a vira de fato na noite anterior. O olhar silencioso e perturbador que inquiria a solução de seus enigmas. Enigmas que ele mesmo não saberia resolver.

O pai fechou o jornal, levantou-se. Era o sinal, todos para o carro.

Alguma notícia importante, pai?

O pai manteve-se quieto e muito sério.

Sim, havia uma. Mas o pai de Israel não havia gostado nem um pouco dela.
O pecado é bem mais confuso. Porque o pecado é mau. Mas, quando é pecado, é porque tá bom. Se é ruim, se eu não gosto, se machuca, não é pecado. Ficar dormindo até mais tarde quando tem serração é pecado. Contar prá todo mundo que eu acertei tudo no ditado é pecado. Pecado mesmo é a Rita, eu não sei bem porque, mas sinto.
Coruja curiosa, parece deus espiando prá me ver pecando, olhos arregalados grudados em mim.
Coruja de sobretudo, esperando eu pensar maldade para me prender em suas garras.
Calças geladas. Molhadas. Não posso me trocar... fazer barulho nem pensar. Se se dão conta que me escapuli... melhor frio do que surra. Não sei. Surra passa logo, frio rasga.
Rasgando carne, trincando ossos, frestas tão pequenas espantam um sono que o cansaço convidou com tantos folguedos. Silvando baixo, intermitente, parecia estar por todos os lados. Sobretudo, os olhos crescem no escuro, fixos, inquirindo, lendo tudo, até o que fica lá no fundo. A gangorra tão conhecida toma proporções assustadoras quando sobe, o equilíbrio acaba, e o abismo não parece ter fundo. Queda sem fim, nem fim no tempo, nem fim no espaço. Concomitantemente, tudo no mesmo ponto, no mesmo instante. Silêncio igual teria duvidado pouco tempo atrás, tudo junto muito longe.
Escureceu.

quarta-feira, agosto 23, 2006

As corujas

Caçadoras eficientes, usando sobretudo seus olhos extremamente aguçados e movimentos rápidos. Além disso, são extremamente atentas ao ambiente podendo girar sua cabeça em até 270° e voar silenciosamente devido a penas especiais muito macias e numerosas que compõem suas asas.

São aves tímidas, geralmente solitárias, consideradas entre os prepadores mais sofisticados do mundo.

Na antiga Grécia, os filósofos pré-socráticos cunhavam moedas com a imagem da coruja. A ave era associada à deusa Atena e, portanto, era considerada um símbolo de sabedoria.

Fonte: Wikipedia

terça-feira, agosto 22, 2006

Está ficando muito tarde - pensou, quando deu-se por si. Caminhou de volta à casa. No trajeto, deteve-se, como de costume, um breve tempo na pracinha longe dois quarteirões de sua casa.

O orvalho escorria silencioso pela gangorra. O balanço movia-se levemente, mas não a ponto de se fazer ouvir. Chegou ao centro da pracinha e tomou assento no gira-gira. Depois, ainda que este estivesse úmido, deitou-se, com o corpo pequeno que facilmente se adaptou à forma circular do brinquedo. Com a ponta do pé esquerdo fez força para conseguir embalo, e começou a girar com velocidade cada vez maior, até não precisar mais dar impulso. Sua visão era a de um céu em espiral, as estrelas fundindo-se e se separando como se fossem cometas cruzando-se. O negro profundo do espaço ganhava ares de mistério, como o interior impenetrável de uma caverna. Agarrou-se com mais firmeza ao metal, tinha a sensação de que poderia perder-se pra sempre caso voasse dali e fosse engolido pela escuridão. Fechou os olhos, dentro de si ainda era quente.

O gira-gira foi perendo velocidade, parou. Abriu os olhos, o céu sobre si ainda girava, confuso. Com esforço levantou-se. Andou alguns passos até sentir novamente o frio da noite, sua única companhia ali. Dirigiu-se à gangorra. Abaixou a ponta que estava no alto - estava mais seca - e se sentou, primeiro mantendo-a equilibrada através das pernas, depois, baixando aos poucos, até fazer chegar ao chão. Pôs-se a mirar a ponta oposta, agora em situação diversa, no ponto alto. Por um momento, quis que alguém estivesse ali com ele - nem que fosse o Rafael -, só para sentir-se mais longe do chão, no ar, como a estrela que brilhava em linha reta com a ponta oposta. Um peso para a leveza. Sempre sonhara em voar...

A umidade veio concentrar-se em sua direção. Pensou na força da gravidade, tão constante e silenciosa. A professora havia explicado com uma maçã. A mesma maçã sobre a qual falara a tia da catequese, pra falar de pecado, mas isto ele não havia entendido bem. A gravidade sim.

Levantou-se. Já estava se molhando demais.

segunda-feira, agosto 21, 2006

Silêncio. Silêncio completo. Não dá prá ter silêncio completo. Sempre fica uma vozinha. Não vou pensar em nada ... tão escuro ... dia de TV ... cheiro... ? ... fumaça? ... queria ser adulto prá ficar acordado... droga! Não consigo ficar sem pensar. Sempre fica alguma coisa. Será que alguém consegue? O Rafael acha que pode tudo, abobado. Aposto que nem ele consegue. Tomara que amanhã tenha suco no café... suco no café? A gente diz café, mas não é sempre café... coisa louca... estudar prá ser importante. Queria saber jogar, correr, sei lá. Aí podia ser importante sem estudar... pena que não pode ligar a luz ... bomba ... e a professora? Ela é muito mais esperta do que o Rafael, me ensinou tudo que eu sei, vai que ela sabe não pensar também? Aí pode ouvir o silêncio, mas deve dar medo, ficar sozinho, sem nem a tua cabeça, mas não pode dar medo, senão não é silêncio, aí já pensou, então como é? ... fez frio mas tava bom brincar, correr esquenta, mas eu canso, droga, coisa sem graça, aí ninguém me escolhe pro time, mas eu sou bom em história, ninguém vai melhor que eu, mas ninguém se importa com aula, mas a professora me elogiou! ... hoje teve TV depois da oficina ... aquela boneca ... quem não ia ver? Nem se importaram, e ela tava sem cabeça ... uma vez vi matarem uma galinha ... festa ... quebraram o pescoço e depois cortaram a cabeça ... assaram ... ... escuro ... amanhã tem... que morno... ... galinha ... ... ... boneca ... ... morno ... ... ...

sexta-feira, agosto 18, 2006

À noite, a tensão já tinha ido embora junto aos últimos raios do entardecer. Um vento suave mas gelado como que o anestesiou por completo, e, agora, um único sentimento brotava do fundo de sua alma. Na verdade, melhor seria dizer que não se percebiam as raízes daquela sensação que mais parecia um gigantesco nada, tão profundo e infinito como o negro céu sobre sua cabeça, tão trespassante como aquele minuano. Sua dor desta vez não era sentida, era, antes, impossível, da mesma maneira que sua própria existência lhe parecia infactível. Teria pensado, se naquele momento pudesse pensar, em todas as perguntas que ao mundo pudesse fazer. Divorciado de seus sentidos, quem sabe tenha desejado apenas que aquela noite nunca acabasse, e a reticência compulsória da sua natureza reinasse para todo o sempre.

quinta-feira, agosto 17, 2006

Muito bem crianças, hora do passeio no pátio. Aproveitem que o sol está lindo.

Ver a televisão era um momento bastante esperado por todos seus colegas e por ele também. Mas naquele dia a experiência tinha sido completamente diferente. Aquela imagem era diversa de tudo que já tinha visto. Imagens da glória da libertação eram comuns, não era aquilo que despertava sentimentos contraditórios em seu peito. Era a boneca que apareceu no filme, sem ser notada por mais ninguém. Poucos segundos, num canto da tela, e sem cabeça. Já tinha brincado com uma daquelas uma vez na sala de jogos. Já tinha estado lá sete vezes, e lembrava de cor de cada uma delas. Na última, tinha sido um dos melhores da turma naquele ano. Orgulho! Pode brincar com um carrinho sem fio! A imagem não lhe saia da cabeça, podia sentir até agora o poder de dirigir aquele carro que se movia como num passe de mágica, pelo mero apertar de botões. Mas aquilo não fazia sentido, não havia brinquedos antes da libertação. As crianças trabalhavam naquele tempo por todo o tempo. Como haveria uma boneca na rua, ignorada e destroçada daquela maneira? Algo estava errado. E aquilo embrulhava o estômago.
Desliga a tv com a imagem, estranhamente dolorosa, da boneca pisoteada fixa em suas retinas, e permanece imóvel. Lembranças de uma revolução. A tão falada revolução que não viveu e sobre a qual seus pais parecem ter feito um pacto de silêncio. Talvez por isso não estivessem agora naquela sala. Uma revolução inventada, a vergonha de uma geração.

Ele nunca tivera bonecas, nem mesmo irmãs que as tivessem, e, se fosse bem sincero à sua memória, notaria uma escassa infância que ainda mal desfrutou. Carrinhos e bolas lhe escapavam. Talvez por isso a boneca decepada lhe atingira o peito como um assombro que vem e rouba o ar e suspende o corpo - foi por uma mistura de aflição e fascínio, num reflexo, que apertou o off.

Na tv ainda se viam desenhados, na parte inferior direita, os contornos de um corpo genérico, mas sem uma generalidade básica, ausência esta que lhe dava calafrios. Sentiu-se inseguro e desamparado. E ainda mais devido à sua imobilidade irreversível.

Uma eternidade se passou até que alguém entrou na sala.

Parênteses

Como o óbvio pode ser tão confuso?

terça-feira, agosto 15, 2006

Caminham todos felizes pela boa nova, a euforia leva-os para a frente. Alguns gargalham pela simples visão da alegria de seus pares. Nada pode contê-los a partir de agora. Até que um rapaz muito tímido, sempre contemplativo, sempre chamado de abobalhado na surdina pergunta com a voz tão insignificante quanto a sua presença: e para onde vamos agora?
Como assim? Somos livres, não precisamos dar satisfações! Todos condenam o pobre, mas não gargalham mais, nem ao menos continuam seu caminho. Já não sabem mais livres de que, ninguém é capaz de responder o que os prendia.
Livraram-se da ilusão. Precisavam agora livrar-se da realidade.
E, no meio da multidão desorientada, uma boneca sem cabeça é pisoteada sem nem ao menos ser notada.
Ah, os acordes da realidade! Emudecem uns ao outros - o turbulento silêncio que, proclamando a ditadura da liberdade, torna-nos surdos à verdade.

A cena agora é a de um comício, que dará origem a uma passeata. O recado final, dado por um dos homens do palanque, não poderia ser outro. Ouvem todos o que querem ouvir, a liberdade aos gritos, e saem apressados a correr o mundo - a catequizar os leigos. Um dos homens corre à sua vila e proclama - "estamos todos livres!", e o povo passa rapidamente de desconfiado para igualmente extasiado - "livres!". Que bênção! O grande dia! Visitam-se as portas de todas as casas. A família que estava reunida em volta da tv até esquece da novela por um instante. Pareciam eles mesmos estarem dentro de uma, coisa estranha, até então sua memória dava conta de uma liberdade comunicada à margem de um longínquo rio, ao sol de um longínquo tempo, por um homem em seu cavalo empunhando sua espada, como mostrava uma figura num livro de história do colégio. O caçula abre a boca e profere sua primeira palavra em língua portuguesa, com uma voz fresca porque nova, doce porque ingênua - "liberdade", e arranca a cabeça da boneca da irmãzinha.
Subitamente, a fantasia acaba. Sons de teclados, fragmentos de diálogos das salas vizinhas, o ventilador de um computador, o silêncio que não tem origem, tudo mistura-se freando o passar do tempo. Inquieto, mudança brusca de ambiente, o conforto do mesmo cede lugar à mudança. Hábito ou vício? Tudo isso por uma economia burra. Um canal dos meus fones de ouvido estraga, e toda a realidade reaparece, real.

segunda-feira, agosto 14, 2006

Que não conhece o mundo a sua volta, então inventa.
Toda fantasia começa com um menino no centro da cena.

sábado, agosto 12, 2006

Para tudo e começa de novo

O dia começa um pouco depois do que devia, e sem a dor de cabeça prometida e doutrinadora, que nos lembra que os prazeres não podem ser vividos impunemente. Calmo, arrastado, bem na boa. Agua, cafe, amenidades e gargalhadas. Sem compromissos, como a vida sempre devia ser. E que dialogo sem pretensões, tão sem sentido para quem vê de fora, tão cheio de significados para seus protagonistas. Daqueles capazes de deixar bobo a mais carrancuda das criaturas. Um sorriso imaginando outro. Sorriso alimentado por bits.
Nesses momentos, ate uma fila fica sem importância, tudo fica facil. Andar, cantar sozinho sem se importar com o que estão pensando. Pra que ler, se a historia mais bonita esta acontecendo agora mesmo? Um dia que acaba na metade, onde nem as ligações mais assustadoras se transformam em medo. Eazy come, eazy goes, eazy let it go. Da força para procurar, força para se esforçar. Vontade de suar, porque tudo tem um objetivo.
Então, os planos ja a muito feitos trazem silenciosos, nuvens. Quilometros, dos pequenos, pesam no peito. Eles representam a incerteza sobre tudo que era certo ate a pouco. E incerteza pode ser penosa. Esperar nunca e bom. E eu so queria mais um sinal...

Turn off your mind, relax and float downstream

Como se fosse facil. Melhor encher a cabeça, colocar os fones pra nao deixar a solidao assentar. Prestar atençao em estereos pode ser uma forma de fuga quando todo mundo que tu gosta esta longe. Vamos la, porra, relaxa. Nem tudo sai sempre como o planejado. Nao ter acentos nao foi proposital, mas e melhor aceitar do que perder o momento. Afinal, nao podemos guardar o cuspe para sempre. Nao ver a noite cair pesa no peito. Ou sera o inverso? Bobo ontem, por causa de poucas frases trocadas em poucos minutos. Por que nao fico abobalhado por mais tempo? Por que nao falei tudo de uma vez? Pra que guardar? Sera que e por isso que eu to assim? Medo? Sera? Acho que o medo e por causa de all tomorrows parties. Por quanto tempo isto vai ser assim? Meu medo ja foi o oposto deste. Na real, alguem ja pode ter decidido tudo por mim, e eu nao vou poder fazer nada. Mas, de repente, pensa a esperança, e a cor, ainda que timida, começa a voltar. Vai que a insegurança e reciproca? E bem capaz de ela estar pensando as mesmas coisas (ou variaçoes sobre o mesmo tema). A cor voltaao quadro, mas nao e pra se animar. Ele ainda esta bem desbotado.

quinta-feira, agosto 10, 2006

Expressão

É saudade, então
E mais uma vez
De você fiz o desenho
Mais perfeito que se fez

Os traços copiei
Do que não aconteceu
As cores que escolhi
Dentre as tintas que inventei

Misturei com a promessa
Que nós dois nunca fizemos
De um dia sermos três

Trabalhei você
Em luz e sombra

E era sempre:
"-Não foi por mal.
-Eu juro que nunca quis deixar você tão triste"

Sempre as mesmas "disculpas"
E desculpas nem sempre são sinceras
Quase nunca são.

Preparei a minha tela
Com pedaços de lençóis
Que não chegamos a sujar

A armação fiz com madeira
Da janela do seu quarto
Do portão da sua casa
Fiz paleta e cavalete

E com as lágrimas que não brincaram com você
Destilei óleo de linhaça
E da sua cama arranquei pedaços
Que talhei em estiletes de tamanhos diferentes
E fiz então, pincéis com seus cabelos

Fiz carvão do batom que roubei de você
E com ele marquei dois pontos de fuga
E rabisquei meu horizonte.

E era sempre:
"-Não foi por mal.
-Eu juro que não foi por mal, eu não queria machucar você.
Prometo que isso não vai acontecer mais uma vez"

E era sempre, sempre o mesmo novamente
A mesma traição

Às vezes é difícil esquecer:
"-Sinto muito, ela não mora mais aqui".

Mas então porque eu finjo
Que acredito no que invento
Nada disso aconteceu assim
Não foi desse jeito.

Ninguém sofreu
E é só você
Que provoca essa saudade vazia
Tentando pintar essas flores com o nome
De Amor-Perfeito e Não-Te-Esqueças-De-Mim.


Acrylic On Canvas - Renato Russo

The invisible hand on the keyboard

Why do economists spend valuable time blogging?

quarta-feira, agosto 09, 2006

Significante

A palavra pertence a mim,
mas só até ela sair da minha boca (ou da ponta dos meus dedos, não importa)
Liberta, se torna pública, com todas as mazelas inerentes
Sendo pública, é de todos. Se de todos, não é de ninguém.
Ninguém se importa com seu sentido, dão a ela o que lhes convém.
Prá que me preocupar então com significados? Formalismos a tornam fria
Se será torcida, prefiro cuspida
Mais bonita quando espremida, quando jorrada
brotando sem pudores, sem consulta.
Os sentidos da palavra pertencem ao ouvinte, ao leitor
Quem proclama se ilude, pensando autoridade
Não quis dizer porra nenhuma, disse o entendido.

Tarde?

Bueno, lê novamente teu último post, abaixo, e imagina tu o que, para mim, foi ler esse parágrafo. Depois, fiquei pensando nessa história de merecimento. Será que não é um conceito tão pueril quanto o do destino? Vê: dizem uns que existe o tal de destino; que as tranformações correriam para um fim previamente teorizado, o "estava escrito"; a resposta de todos os encontros e desencontros. Que sentido há em dizer tais coisas? Sabe qual a única utilidade eu vejo ser possível de fato para estas afirmações? A velha transferência de responsabilidades. O homem gosta de se fazer de vítima, principalmente quando a situação complica - porque quando a glória vem ele se enche de si e estranhamente passa por um momento em que se vê como o senhor de sua vida. Sempre é mais fácil ter a quem culpar, seja ao destino, seja a Deus - que, para fins da mesma transferência, é posto em lugar externo ao homem.

Daí fiz a relação: merecimento? Quem está acima para dizer o que mereces? Que idéia vaga é essa?! O que fizeste para merecer nascer? Tua própria morte depende de um merecimento ou ela é certa e foge desta necessidade? Do mesmo modo, os acontecimentos que por ti passarem ao longo do período entre esses dois fatos desmerecidos não hão de corresponder a nenhum juízo, ou tampouco celebrar tuas ações e inações, sejam quais forem. Logicamente, o que fazes ou deixas de fazer têm implicações no que virá a seguir, isso é tão claro quanto dizer que parar de te alimentar te fará desvanecer. E é nessa simplicidade que corre, ou caminha, a vida. Tu escolhes em que tempo e para onde.

Tarde? Onde leste tal profanação da tua vida? Onde ouviste tal confinamento dos teus dias?
Corria pro fim, mas não sabia que o fim estava lá. Pensava estar indo na direção contrária, buscando um novo começo. Mas não se começa mais nada a esta altura do campeonato. Será? Mandar tudo às favas é loucura, mas também não é loucura insistir na mediocridade? Aceitar o que se tem pode ser prova de sabedoria, se o que temos é mais do que merecemos. Mas é garantia de infelicidade se temos capacidade ociosa. Infelizmente, não sei o quanto eu mereço.

sexta-feira, agosto 04, 2006

Melancolia Emulada

O vento bem forte cortando lá fora
lá fora bem minuano, bem morno aqui dentro.
Aqui dentro o conforto do passado,
do passado que sonhava em francês.

Olhos grandes, olhando com atenção
atenção mirando no cristal,
de vergonha de poder.

A vergonha de fora encaranga
E não escuta a milonga que canta
a tristeza do frio.

Milonga feita para ensinar a crueldade do frio
a quem não poderia saber.
O fogo mascara, transforma em conforto
Milonga: melancolia emulada.

quinta-feira, agosto 03, 2006

Wikipedia

A wikipedia é uma enciclopedia on-line livre, e que é escrita em colaboração com seus leitores. A parte questões informacionais - eu não sei quem escreveu sobre determinado tópico - acho a idéia muito interessante e utilizo com freqüência.
O que foi comentado por aqui outro dia é que a wikipedia é livre e podemos acrescentar informações. Meu comentário foi, por que não o fazemos? Acho que é claro onde vou buscar a resposta para a pergunta: na economia. É a melhor ferramenta de que eu disponho para tal análise.
Não é da boa vontade do padeiro, do açogueiro e do mestre cervejeiro que obterei meu almoço amanhã, ou seja, ninguém aqui é bobo e, por isso, não vai fazer nada se não obtiver nada em troca. Além disto, não existe almoço grátis: ninguém ganha nada gratuitamente. Se não foi você que se esforçou ou pagou, alguém teve que fazê-lo.
A última afirmação deixa claro que, se a wikipedia existe, não foi por obra divina. Alguém teve que escrever, publicar, botar o site no ar. A primeira toca no ponto em questão. Não fazemos, porque não temos incentivos suficientes para tanto. É muito mais cômodo ter um site pelo qual não se paga nada, pode-se consultar a vontade, e não precisamos nos esforçar para que ele exista. Enfim, é fácil entender por que podemos colaborar com a wikipedia, mas não fazemos.
Mas uma pergunta mais interessante do que esta primeira, mas não tão óbvia é: por que algumas pessoas colaboram, se não são obrigadas?
Para responder a esta pergunta, fui fuçar no site. Ali diz que, se você for registrado a mais de 45 dias e tiver mais de 100 contribuições válidas, terá direito a voto nas questões em discussão que exijam decisões da comunidade. Penso que alguém deve derivar algum status de ter direito a voto (novamente, a utilidade). Não se encerrará a questão aqui, mas é possível verificar se a busca por status é um incentivo importante para contribuir com o wikipedia. A grosso modo, temos que descobrir se a grande maioria das contribuições é feita pelos mesmos usuários, que são ou buscam o status de grande colaborador. Se, utilizando as ferramentas estatísticas necessárias, não formos capazes de rejeitar esta hipótese, podemos assumir esta como uma explicação convincente para a questão.
Alguma outra sugestão para a pergunta em questão?

quarta-feira, agosto 02, 2006

POR ExeMPLO, O AMoR. Sobre ele tem se debruçado uma infinidade de olhares, de onde surgem variadas relações. Fala-se do amor à primeira vista, do amor eterno, do amor de verão, o amor carnal, o amor atravessando a morte, o amor como essência da vida, o amor como fidelidade, o amor como desejo, o amor como meta, o amor como meio, o amor passional, o amor divino, o amor platônico, o primeiro amor, o amor da vida, o amor como força, o amor como destino, o amor como sustento, o amor como tudo.

Se o amor não encontra na realidade tal espaço para ser praticado, para ser de fato, é outra coisa. O caso é que ele está, como se diz, na boca do povo. Não vou aqui buscar as raízes deste fenômeno, acredito que a natureza humana é que, no final das contas, determina que assim seja. O amor, creio, é a força de vida do ser humano, a sua vontade de ser. No entanto, não é tudo - fosse, estaríamos muito bem. Diferente é tratar de sua onipresença, aí se pode discutir, acho até que é questão de crença, na medida em que as provas, ao meu ver, necessitam de uma disposição amorosa para serem experimentadas.

Retornando ao fio da meada, dizia que o amor é o assunto em voga, pelo menos desde quando e onde tenho me conhecido por gente. Depois de tomar o primeiro contato com ele, quando você aprende que ama seus pais, inicia-se uma espécie de pregação do amor que entrará pela sua vida adulta. No colégio fica sabendo que tem que amar seu coleguinha, a tia da catequese instrui a amar a Deus sobre todas as coisas. Primeiro Deus, depois seu coleguinha. Amar é comportar-se e acreditar no bem daquele comportamento. Respeitar o outro, isso é importante. Mas, você notou?, existem níveis de amor - olha o nobre sentimento sendo quantificado aí.

Provavelmente você tenha uma televisão, muitas pessoas têm. Ah, o amor, o amor borbulha na televisão! Veja a novela, como se amam e não se amam aquelas pessoas! E é bem fácil distingüir uma das outras. Os que amam são so do bem, os que não amam são os do mal! Pegou?! Veja aquela ali, bondosa, não tem inveja de ninguém, dá os melhores conselhos para as amigas, pede licença quando vai falar... não merece o príncipe encantado? Não é digna do amor do rapaz? Claro que sim, ali está ele, repare como é igualmente perfeito, talvez em outra vida pudessem ser irmãos os dois, como se parecem, ah o amor, o fabuloso e irretocável amor. A novela termina, você vai deitar. Com a cabeça posta no travesseiro pensa em sua turma de sétima série. Ah, eu gosto dele, eu gosto dela, mas não é o meu amor, não tem ninguém ali que seja assim, sabe? E você dorme e sonha com imagens várias, formando uma história absurda em sua mente.

Mas era só mais um sonho. Você acorda para a prova de literatura, no outro dia. E fora o alívio de tê-la acabado, sai dela com uma idéia sobre os pobres poetas, homem que viveram suas vidas em busca do amor, e que caminhos espinhosos e longos os separavam! Ah, mas vale a pena, você pensa. Pelo amor eu hei até de largar tudo, bem como diz a letra daquela música ou fez aquela moça do filme.

Talvez não haja maior fábrica deste amor que Hollywood. E nós sabemos como esses filmes fazem sucesso. Eles dizem "você pode encontrar seu amor, a qualquer momento, e isso vai mudar a sua vida". E, também, "ah, que lástima se você não encontrar o amor da tua vida, que vida sem propósito!". Aos poucos, você fica aflito, para onde devo olhar, aonde devo buscar, o que devo fazer, o tempo está passando. Começa a caçada. Talvez não tenha tanta sorte e encontre pessoas muito más pelo caminho, que te façam sofrer e quase desacreditar. Mas sempre haverá um amigo para lhe tirar do poço e lembrar que sim, ah sim, há esperança para você, não divide, se passou pelo que passou foi para se preparar para o que vem adiante, adivinhe, o true love.

Quando você, em um dia extraordinário, começar a pensar mais por si mesmo e A notar as influências que participaram nas escolhas de sua vida, quem sabe compreenda o que não é o amor. Assim, mais livre, tendo varrido as falácias de seu quintal, terá seus sentidos mais aguçados, razão e coração abertos para descobrir o verdadeiro significado do amor.

terça-feira, agosto 01, 2006

Política da palavra

No decorrer dos discursos pela História, muitas palavras ampliaram suas fronteiras para dar conta de tantos novos significados, não necessariamente correlacionados com o original. Não é preciso dizer, mas eu vou, que a mídia contribuiu muito para essa acomodação, segundo seus preceitos nem sempre responsáveis, como sabemos. Da mesma forma contribuiu a classe política. De uma forma geral, é importante dizer, todos nós somos partícipes deste processo, mas é inegável a diferença nos níveis de influência.

Assim, a palavra artista, por exemplo, tem hoje uma gama muito ampla de significados, de maneira que se pode dizer, inclusive, que arranja internamente significados de sentidos diametralmente opostos. De fato, isso pode ser demonstrado tomando-se tal palavra e inferindo a ela um certo sentido. O que ocorre é que tal sentido tanto pode ser utilizado no sentido literal como no que traz consigo a veia da ironia. Ou seja, "A Carla Perez é uma artista" e "A Carla Perez é uma artista".

É verdade que não há limites para a ironia, toda palavra está potencialmente sujeita ao seu gozo, isto é natural. Mas há de se notar a ruína de sua sutileza no discurso atual. De tal modo que não só a palavra banalizou-se como, por contágio, a ironia vulgarizou-se.

Essa total falta de critério contamina a sociedade de maneiras diversas e por todos os lados, através do efeito-dominó, potencializado atualmente por esse clamor de liberdade, que, na prática, permitindo toda e qualquer manifestação, instala um estado de anarquia dos significados. É esta desorganização no estado das idéias expressas que permite que qualquer um (mas não qualquer um - qualquer um com poder o bastante) levante o braço e proclame o significado da verdade. Pior só quando, por artifícios escusos, o proclamador coíbe o questionamento desta verdade.

A sociedade pós-moderna* corre para ocupar todos os espaços, inclusive todos aqueles que o tempo lhe concede. Nessa ânsia desenfreada - nem sempre desmedida - subtrai alguns vazios valorosos, como o silêncio, enquanto alça vazios-de-virtude ao mesmo nível de conceitos com alguma originalidade.

Quase não sobra silêncio e palavra para se pensar.

*embora eu não saiba bem o que é isso