terça-feira, março 27, 2007

Alegre Manhã no Porto

Sorte e pontes, o cinza volta às ruas da cidade. Os trapos cobrem, mortos vivos, todos misturados, piolhos e pulgas, toda uma sociedade alimentando-se do asco, da umidade e de epitélios mortos. Abaixo deles, um corpo dá vida e energia a esta cultura que teima em enfrentar o frio que castiga já fazem dias, que chegou com vontade este ano e que não dá sinais de apatia. Os trapos, que ele chama de cobertor, não são suficientes para tornar a temperatura confortável. E mesmo que fossem, seu cheiro elimina qualquer possibilidade de aplicação da palavra conforto.
O desapego completo não veio da nobreza de espirito, veio antes da necessidade e orgulho. O costume anestesia. Já não importa atravancar a passagem, que desviem o olhar, que sua presença seja uma bolha de mau cheiro obstruindo a calçada. Foi-se o tempo que vivia da pena. Pedia, explicava, convencia a caridade com um olhar de fome, de desamparo. Agora espera o resto, as sobras de todos que não desistiram. Moedas não lhe são mais úteis, desde que não é mais permitida sua presença em um bar, um restaurante, uma venda. Antes de ser capaz de mostrar algum dinheiro, é convidado a se retirar, na melhor das hipóteses. Enxotado, com mais freqüência.

Apostou, há um bom tempo atrás, apostou alto. É o problema de mirar na cabeça, o prêmio é grande, mas não pode errar. Mirou e foi, mas não conseguiu. Quando olhou para trás, não tinha mais caminho de volta. Cabeça dura, não confessou o erro, não pediu penico. Cada passo à frente distancia mais a encruzilhada, agora resta esperar.

Loucura e sorte, sua história não poderia ser por ele contada. O tempo solitário, a febre, infecções e paranóias destruiram sua consciência. Duvido ser capaz de manter um diálogo inteligível. Mais certo soltar idéias sem nexo, flashes e ilusões, balbucios.

E assim acordou hoje, um pouco mais tarde do que o normal, porque o sol não veio fustigar seu rosto. Sorriu e sentiu o estômago. Precisava comer, sabia onde encontrar algum com o que enganar. A parte mais complicada é a madrugada. A vigília e o medo misturados com a febre que não deixa repousar. Não tinha nada que interessasse a alguém para ser tirado, mas ainda tinha seu corpo para doer. E sádicos existem. A surra que tomou certa vez não o deixa dormir, o mantém alerta. Repousava tranqüilo, ainda não conhecia as maldades escondidas na noite. Mal teve tempo de acordar e se proteger, chutaram-no sem piedade. Foram apenas alguns segundos, correram e ele ficou sangrando ali no chão. Nos dias seguintes a dor continuava a lembrar, e foi difícil dormir. Os outros dormem em bandos, melhor para se proteger. Mas não é um deles, nunca obteve permissão.

Com um mamão passado servindo de refeição, volta a seu mundo. Enrola-se em seu cobertor, seu reino, e lembra-se de Anabela, fazem dois dias que não aparece (não sabe disto com certeza, confunde-se freqüentemente). Quem sabe hoje tem a sorte de receber sua visita.

Nenhum comentário: