terça-feira, outubro 31, 2006

Volta

Meus medos. Gostaria de perdê-los. Sei lá, esquecer no cinema, entre as pipocas que me escapassem, deixar, distraído, no meio de um livro grosso de uma biblioteca distante. Ou, melhor seria que os perdesse à beira do Atlântico, submersos na impermanência das dunas, para que quando a maré subisse, à noite, o mar dissolvesse todo resquício de minha insegurança, o sal corroesse o mais férreo dos meus receios. Meus medos me estacionam, me paralisam. Mas não de modos primitivos ou grosseiros. Meus medos me inibem com pormenores finos, quase educados. De maneira que por pouco não convenço a todos de que se não obtive progresso aqui ou acolá foi porque a escolha mais acertada era mesmo calar, era mesmo não ir, era mesmo não fazer caso. E, pior, convenci a mim mesmo, inúmeras vezes, de que minha inação era exemplo de minha sobriedade, de meu bom-senso. A vitória do meu pensamento sobre minhas paixões. Até ares de intelectual ganhei no espelho - um pouco de vaidade ajuda quando faltam convicções. Todavia, muito secretamente, coisa que não aparecia nem como sombra nas minhas pupilas contraídas, eu desaparecia dentro de mim. Nos meus medos foi onde me perdi. Ao me impedir sistematicamente de aparecer, eles foram me desaparecendo, seqüestrando minha respiração, bebendo meu sangue: ganhando meus ares, sendo meu corpo. Tremo e tenho minhas unhas roídas, todas. Não sei o que me livrou de uma asma. De minha memória, meus medos me concedem poucas lembranças, e, ainda assim, por meio de um processo burocrático: protocolos, carimbos, concessões e censuras. Ainda me escapam suspiros transgressores, mas, porque têm de se esconder, planejam uma revolução com tanto cuidado, tanta lentidão, que o ímpeto dissipa-se, o fôlego extravia-se num emaranhado de senhas desconexas. Senhores de mim, meus medos me governam cada dia com mais petulância, ceifam-me o passado como se fosse uma erva daninha, promulgam-me um futuro de perspectivas limitadas. São ditadores os meus medos. Uma droga. Os desgraçados viciam. Contei quarenta e oito horas em que escapei de suas vontades, em dois dias quase inteiramente dormidos. E o sonho tem sido o lugar praticamente exclusivo, se os sonhos fossem praticamente, em que eu digo o que penso e até sem pensar, vou aonde quero e até sem saber, sou – sou! – sem deixar de ser. Acordo. E não me surpreende o desacordo entre meu sonho e minha prisão. Por algum motivo - ora, sabemos, são os medos - esqueço o sonho e risco mais um dia na parede. Um pássaro me vem à janela. Escrevo notícias de mim para o mundo, que enrolo e amarro às suas patas frágeis. Vôo um vôo de um pássaro que não sei por onde vai passar. E a minha liberdade conta os dias no reverso de meus dias, na tentativa de encontrar-me na véspera de meus medos.

4 comentários:

Anônimo disse...

Me idenfitiquei muito com esse texto. Na verdade, parecia que era eu mesma quem tinha escrito...(claro q se tivesse sido eu o texto não teria esse refinamento.)

Arbº disse...

Pois é, comecei com essa tentativa de crônica para a oficina, mas fui tomado por essa ânsia talvez intimista demais, não sei se acabou sendo. Persistirei com outras tentativas.

Felipe disse...

Sim, os sonhos não são praticamente. Interessante.

Arbº disse...

"O medo tem algum utilidade. A covardia, não." - Mahatma Gandhi