terça-feira, outubro 31, 2006
Volta
Meus medos. Gostaria de perdê-los. Sei lá, esquecer no cinema, entre as pipocas que me escapassem, deixar, distraído, no meio de um livro grosso de uma biblioteca distante. Ou, melhor seria que os perdesse à beira do Atlântico, submersos na impermanência das dunas, para que quando a maré subisse, à noite, o mar dissolvesse todo resquício de minha insegurança, o sal corroesse o mais férreo dos meus receios. Meus medos me estacionam, me paralisam. Mas não de modos primitivos ou grosseiros. Meus medos me inibem com pormenores finos, quase educados. De maneira que por pouco não convenço a todos de que se não obtive progresso aqui ou acolá foi porque a escolha mais acertada era mesmo calar, era mesmo não ir, era mesmo não fazer caso. E, pior, convenci a mim mesmo, inúmeras vezes, de que minha inação era exemplo de minha sobriedade, de meu bom-senso. A vitória do meu pensamento sobre minhas paixões. Até ares de intelectual ganhei no espelho - um pouco de vaidade ajuda quando faltam convicções. Todavia, muito secretamente, coisa que não aparecia nem como sombra nas minhas pupilas contraídas, eu desaparecia dentro de mim. Nos meus medos foi onde me perdi. Ao me impedir sistematicamente de aparecer, eles foram me desaparecendo, seqüestrando minha respiração, bebendo meu sangue: ganhando meus ares, sendo meu corpo. Tremo e tenho minhas unhas roídas, todas. Não sei o que me livrou de uma asma. De minha memória, meus medos me concedem poucas lembranças, e, ainda assim, por meio de um processo burocrático: protocolos, carimbos, concessões e censuras. Ainda me escapam suspiros transgressores, mas, porque têm de se esconder, planejam uma revolução com tanto cuidado, tanta lentidão, que o ímpeto dissipa-se, o fôlego extravia-se num emaranhado de senhas desconexas. Senhores de mim, meus medos me governam cada dia com mais petulância, ceifam-me o passado como se fosse uma erva daninha, promulgam-me um futuro de perspectivas limitadas. São ditadores os meus medos. Uma droga. Os desgraçados viciam. Contei quarenta e oito horas em que escapei de suas vontades, em dois dias quase inteiramente dormidos. E o sonho tem sido o lugar praticamente exclusivo, se os sonhos fossem praticamente, em que eu digo o que penso e até sem pensar, vou aonde quero e até sem saber, sou – sou! – sem deixar de ser. Acordo. E não me surpreende o desacordo entre meu sonho e minha prisão. Por algum motivo - ora, sabemos, são os medos - esqueço o sonho e risco mais um dia na parede. Um pássaro me vem à janela. Escrevo notícias de mim para o mundo, que enrolo e amarro às suas patas frágeis. Vôo um vôo de um pássaro que não sei por onde vai passar. E a minha liberdade conta os dias no reverso de meus dias, na tentativa de encontrar-me na véspera de meus medos.
segunda-feira, outubro 30, 2006
Já voltei e volto a repetir, mas minto por ironia ou compaixão, tanto faz. O que não faz é admitir de vez para logo encerrar. Cerro dentes e olho pro lado, tonto. Melhor assim do que o olho no olho, embaraço e obrigação. Não fazia antes, não é do meu feitio agora. Se me importa abrir uma fresta, não faz pouco em escancarar por completa. O problema é princípio, no final importam os meios.
Atitudes deliberadas levam a conseqüências inesperadas. Compras, contas, erros e monstros, livros bizarros. À luz de idéias, fogo de mel e encantos de bundas, tudo misturado no mesmo caldeirão espiralando como num desenho animado e borbulhando céu afora.
Apaga.
4 minicontos
Porque era ela, era ele.
Sentia-se um palhaço. Doía-lhe a espinha. Fazia-o de bobo com sua prepotência. Ousada, apontava no seu nariz: vergonha. Enfadava-lhe aparecer. Talvez fosse mesmo a sua alma contida naquele pus retido.
O destino de quem é transparente.
Não tinha jeito. E aquele andar coisa-de-louco. Curvou-se em reverência natural. Ela passou cega e apressada como se percorresse a própria mão. Fez cócegas na dele. Estaria traçada na linha da vida.
Da última geração.
Tudo que tinha era pressa. Destino ou decisão, o que viesse primeiro. Não tinha dados ou dor. Muito menos a sorte de um amor. Fosse um computador! Mas era só a pressa. Peça do tempo sobre a ausência.
Réquiem para um desencontro.
O violão não ouviu a voz da luz. Sentiu o calor esticar suas cordas, silenciosa tortura expandindo seu corpo. O último grito veio em seis notas trágicas que o fogo rebentou. A lâmpada explodiu de dó.
Sentia-se um palhaço. Doía-lhe a espinha. Fazia-o de bobo com sua prepotência. Ousada, apontava no seu nariz: vergonha. Enfadava-lhe aparecer. Talvez fosse mesmo a sua alma contida naquele pus retido.
O destino de quem é transparente.
Não tinha jeito. E aquele andar coisa-de-louco. Curvou-se em reverência natural. Ela passou cega e apressada como se percorresse a própria mão. Fez cócegas na dele. Estaria traçada na linha da vida.
Da última geração.
Tudo que tinha era pressa. Destino ou decisão, o que viesse primeiro. Não tinha dados ou dor. Muito menos a sorte de um amor. Fosse um computador! Mas era só a pressa. Peça do tempo sobre a ausência.
Réquiem para um desencontro.
O violão não ouviu a voz da luz. Sentiu o calor esticar suas cordas, silenciosa tortura expandindo seu corpo. O último grito veio em seis notas trágicas que o fogo rebentou. A lâmpada explodiu de dó.
quarta-feira, outubro 25, 2006
Dicas de um passageiro
Los Hermanos estarão (com Mombojó) dias 16 e 17 no salão de Atos da UFRGS e vai dar pra entrar por R$ 7,50, te liga. E outra, a Feira do Livro de Porto alegre, que começa nesta sexta-feira, está cheia de oficinas bacanas, entre outras programações.
Perderão aqueles que deixarem pra depois.
Perderão aqueles que deixarem pra depois.
terça-feira, outubro 24, 2006
sexta-feira, outubro 20, 2006
quarta-feira, outubro 18, 2006
terça-feira, outubro 17, 2006
Passaporte
dá saudade
de ver-te
desconhecendo
passar por ti
teus olhos e através
fronteira
linda
imaginar tua língua
detrás de teus lábios
que me silenciam canto
de sorriso
dá saudade
reconhecer-te
só de sonho
cruzar na rua a ponte
numa tarde demorada
passar-me despreocupada
com brisas de volver quem é
de ver-te
desconhecendo
passar por ti
teus olhos e através
fronteira
linda
imaginar tua língua
detrás de teus lábios
que me silenciam canto
de sorriso
dá saudade
reconhecer-te
só de sonho
cruzar na rua a ponte
numa tarde demorada
passar-me despreocupada
com brisas de volver quem é
Desktop
Clama-se pela necessidade de novas fontes e portos, proclama-se que navegar é preciso. O pombo correio não pára de ir e vir com mensagens de boas novas, em uma centena de línguas. O rei já não se sente confortável em seu trono de descansar, confia mais é em ninguém. Aflitos, dois eunucos suicidam-se bem na sua frente. Impaciente, um nobre organiza um golpe. Mas se descuida e pega um vírus que põe fim aos seus planos. Um jovem de 11 anos dá risada num ponto remoto do reino.
segunda-feira, outubro 16, 2006
Nem sei se
Não, não chores não
por mim
eu fico um pouco mais
aquém do que imaginou
além do que sorriu
Nem de graça vou
voltar
é o que sonhei
prá ti que declinou
prá quem mais eu menti
Chora
Não
Por mim
Chora
Não
Por mim
Sim tu te entregou
prá mim
foi só tesão
prá quem se enganou
sabendo que partiu
Sinto, te entregou
prá mim
não serve não
por que não esperou
saber o que eu senti
Chora
Não
Por mim
Chora
Não
Por mim
por mim
eu fico um pouco mais
aquém do que imaginou
além do que sorriu
Nem de graça vou
voltar
é o que sonhei
prá ti que declinou
prá quem mais eu menti
Chora
Não
Por mim
Chora
Não
Por mim
Sim tu te entregou
prá mim
foi só tesão
prá quem se enganou
sabendo que partiu
Sinto, te entregou
prá mim
não serve não
por que não esperou
saber o que eu senti
Chora
Não
Por mim
Chora
Não
Por mim
quarta-feira, outubro 11, 2006
GIz para Renato
E mesmo sem te ver
Acho até que estou indo bem
Só apareço, por assim dizer,
Quando convém
Aparecer ou quando quero.
Desenho toda a calçada
Acaba o giz, tem tijolo de construção
Eu rabisco o sol que a chuva apagou
Quero que saibas que me lembro
Queria até que pudesses me ver
És parte ainda do que me faz forte
E, p’rá ser honesto,
Só um pouquinho infeliz.
Mas tudo bem
Tudo bem
Tudo bem
Lá vem lá vem lá vem
De novo:
Acho que estou gostando de alguém
E é de ti que não me esquecerei.
[giz, renato russo]
Acho até que estou indo bem
Só apareço, por assim dizer,
Quando convém
Aparecer ou quando quero.
Desenho toda a calçada
Acaba o giz, tem tijolo de construção
Eu rabisco o sol que a chuva apagou
Quero que saibas que me lembro
Queria até que pudesses me ver
És parte ainda do que me faz forte
E, p’rá ser honesto,
Só um pouquinho infeliz.
Mas tudo bem
Tudo bem
Tudo bem
Lá vem lá vem lá vem
De novo:
Acho que estou gostando de alguém
E é de ti que não me esquecerei.
[giz, renato russo]
terça-feira, outubro 10, 2006
Quando um dia ensolarado começa pesado, sei que não melhora mais. Há dias estou assim e sei que é o excesso de compromissos. Não é o dia que está assim, sou eu. É café preto engolido às pressas, no estômago vazio, digerindo notícias lidas no mesmo ritmo, lidas para que não pareça um idiota para o primeiro idiota que encontrar. Na porta do elevador, me lembro das chaves do carro e volto. Em cima do armário, mesmo lugar de sempre. Aproveito para tomar um copo d'água e para pegar um disco para escutar no caminho. Baden Powell, o trânsito é o tempo que me dou para escutar música, coisa cara para mim. Cara, mas que andou perdendo espaço para outras, talvez mais urgentes. Luxo é elástico.
No carro, pego a direita, e o Fim Da Linha mistura-se com a lembrança de uma Ipiranga cheia. Gosto das ruas de Porto Alegre, das árvores, do clima provinciano, menos caótico. O ar condicionado, os vidros fechados, a música, tudo isso não me deixa voltar realmente para cá. Falta o mormaço, a falta de vontade hoje tem outras razões. Estranho preocupar-me com o trânsito de Porto Alegre, tendo vivido São Paulo. Viver São Paulo significa horas nos deslocamentos. É sair uma hora antes do compromisso para descobrir que um acidente parou tudo, e todos sabem que isto acontece, e ninguém quer saber, porque deveria ter saído duas horas antes.
Engraçado como o pessoal espantou-se quando disse que voltaria para cá. Não sofri seqüestro relâmpago e nem assalto, por que deixar Sampa? É claro que nunca ganharei aqui o que ganharia lá. O que eles não entendem é exatamente isto aqui. Árvores no bairro, poder tirar o pé. Mas eu não tirei o suficiente. Na garagem, vejo que tenho dez minutos para chegar ao escritório, o dobro do necessário.
Toca o telefone. É o Bruno? Não é do feitio dele ligar a essa hora da manhã.
No carro, pego a direita, e o Fim Da Linha mistura-se com a lembrança de uma Ipiranga cheia. Gosto das ruas de Porto Alegre, das árvores, do clima provinciano, menos caótico. O ar condicionado, os vidros fechados, a música, tudo isso não me deixa voltar realmente para cá. Falta o mormaço, a falta de vontade hoje tem outras razões. Estranho preocupar-me com o trânsito de Porto Alegre, tendo vivido São Paulo. Viver São Paulo significa horas nos deslocamentos. É sair uma hora antes do compromisso para descobrir que um acidente parou tudo, e todos sabem que isto acontece, e ninguém quer saber, porque deveria ter saído duas horas antes.
Engraçado como o pessoal espantou-se quando disse que voltaria para cá. Não sofri seqüestro relâmpago e nem assalto, por que deixar Sampa? É claro que nunca ganharei aqui o que ganharia lá. O que eles não entendem é exatamente isto aqui. Árvores no bairro, poder tirar o pé. Mas eu não tirei o suficiente. Na garagem, vejo que tenho dez minutos para chegar ao escritório, o dobro do necessário.
Toca o telefone. É o Bruno? Não é do feitio dele ligar a essa hora da manhã.
Olhos de Édipo
"[...] Tomas acompanhava esse debate (como dez milhões de tchecos), e acreditava que haveria certamente entre os comunistas alguns que não eram assim tão ignorantes (deviam pelo menos ter ouvido falar dos horrores que tinham acontecido, e que não paravam de acontecer na Rússia pós-revolucionária). Mas é provável que a maior parte deles não soubesse de nada.
E ele dizia para si mesmo que o problem a fundamental não era: sabiam ou não sabiam? Mas: seriam inocentes apenas porque não sabiam? Um imbecil sentado no trono estaria isento de toda responsabilidade somente plo fato de ser um imbecil?
[...]
Nesse ponto Tomas se lembrou da história de Édipo. Édipo não sabia que dormia com sua própria mãe, e, no entanto, quando compreendeu o que tinha acontecido, nem por isso se sentiu inocente. Não pôde suportar a visão da infelicidade provocada por sua ignorância, furou os olhos e, cego para sempre, partiu de Tebas. [...]"
{A insustentável leveza do ser, quinta parte, capítulo 2 - Milan Kundera}
E ele dizia para si mesmo que o problem a fundamental não era: sabiam ou não sabiam? Mas: seriam inocentes apenas porque não sabiam? Um imbecil sentado no trono estaria isento de toda responsabilidade somente plo fato de ser um imbecil?
[...]
Nesse ponto Tomas se lembrou da história de Édipo. Édipo não sabia que dormia com sua própria mãe, e, no entanto, quando compreendeu o que tinha acontecido, nem por isso se sentiu inocente. Não pôde suportar a visão da infelicidade provocada por sua ignorância, furou os olhos e, cego para sempre, partiu de Tebas. [...]"
{A insustentável leveza do ser, quinta parte, capítulo 2 - Milan Kundera}
sexta-feira, outubro 06, 2006
Grovska (1)
- Grovska, disse ao acordar. Não fez caso, mas, dada a circunstância, nem era mesmo de se fazer. Tinha dias em que punha as meias do avesso, outros em que escovava os dentes com a escova de Bruna, uns em que simplesmente desligava o despertador achando, talvez, tratar-se de um mosquito desses que ousam incomodar uma boa noite de sono. Ou seja, acostumara-se a vestir a consciência somente depois de bem ter dado o nó na gravata, último movimento antes de pegar as chaves e sair de casa. Quem sabe fosse a senha de seu despertar o barulhinho das chaves entrechocando-se como se revelassem seus sonhos com urgência, antes que eles evaporassem feito água.
Esquentou água pro café pensando, exatamente, em que haveria sonhado. Acordara com uma sensação estranha, que de estranha passou a inexplicável quando olhou pro relógio e, incrédulo, constatou que pela primeira vez no ano havia se antecipado à hora de levantar, que no seu caso era sete e trinta. Que coisa. O microondas apitou. Conseguiu capturar imagens e sensações menos escorregadias: bonecas, país estrangeiro, pressa. Enrugou a testa. Do quarto veio soar o despertador. Sete e trinta informava a voz doce de sua namorada, e cada vez menos doce alertava, até vir o berro histérico e chato numa voz quase masculina, muito da maleducada. Foi desligar. O microondas voltou a apitar. O dia prometia e a promessa era nada agradável. Grovska. Grovska? Enrugou a testa. Estranho. Admitiu que ainda sonambulava. Tomou um gole do café. Esquecera do açúcar. Voltou a pensar nas bonecas. Não eram de pano, soube que sabia naquele instante. Eram duras, talvez frias, pintadas. E com pressa. As bonecas é que tinham pressa. Não só elas, ele também, todos. Talvez os perseguissem. Tinha uma ponte. Tomou mais um gole, balançou a cabeça, foi pôr açúcar. Três colheres de chá. Atravessavam a ponte, talvez fugissem do país estrangeiro, ou para ele. Desconhecia aqueles homens, por que o perseguiam? E, que diabos, bonecas?! Pela primeira vez no dia sorriu. Pensou na namorada, ela sorria na foto sobre a mesa, virou-se para contemplá-la. A essa hora estaria em algum daqueles cafés de Roma, ela adorava café. Eles. Tomou o último gole. Heitor veio esfregar-se em suas pernas. Era o gato. Querendo comer, certamente, e com muita razão. Miou. Gostou de ouvir algum som afetuoso. Acariciou os pêlos de Heitor. Macios. Heitor parecia gostar, presumia-se um sorriso. Pensou na namorada novamente, desta vez teve a sensação de senti-la. Macia. Heitor miava agora repetidamente. Será que quer comer? Foi ver se achava aquela ração, mas não lembrou onde Bruna dissera que guardava. Teve uma idéia fabulosa: pegou um pires, pôs leite. Heitor enrugou a testa. Por um breve instante ambos miraram o leite. E slept, slept, slept, soou a pequena língua de Heitor esvaziando o pires com sua pequena língua. Esvaziou. Ficou olhando pro gato, o gato pra ele. Definitivamente Heitor não estava satisfeito. Lembrou que ontem não havia lhe dado nada do que comer, ou... beber. Talvez nem anteontem, será? Foi buscar no armário um prato de sopa.
Foi quando contemplava com interesse e espanto a cena do alvo Heitor de bigodes leitosos dando conta do segundo prato fundo que tocou o telefone. Absorto, apercebeu-se só no sétimo toque, quando o gato deu-se por satisfeito aparentemente. Foi atender.
Grovska?
Heitor enrugou a testa.
Esquentou água pro café pensando, exatamente, em que haveria sonhado. Acordara com uma sensação estranha, que de estranha passou a inexplicável quando olhou pro relógio e, incrédulo, constatou que pela primeira vez no ano havia se antecipado à hora de levantar, que no seu caso era sete e trinta. Que coisa. O microondas apitou. Conseguiu capturar imagens e sensações menos escorregadias: bonecas, país estrangeiro, pressa. Enrugou a testa. Do quarto veio soar o despertador. Sete e trinta informava a voz doce de sua namorada, e cada vez menos doce alertava, até vir o berro histérico e chato numa voz quase masculina, muito da maleducada. Foi desligar. O microondas voltou a apitar. O dia prometia e a promessa era nada agradável. Grovska. Grovska? Enrugou a testa. Estranho. Admitiu que ainda sonambulava. Tomou um gole do café. Esquecera do açúcar. Voltou a pensar nas bonecas. Não eram de pano, soube que sabia naquele instante. Eram duras, talvez frias, pintadas. E com pressa. As bonecas é que tinham pressa. Não só elas, ele também, todos. Talvez os perseguissem. Tinha uma ponte. Tomou mais um gole, balançou a cabeça, foi pôr açúcar. Três colheres de chá. Atravessavam a ponte, talvez fugissem do país estrangeiro, ou para ele. Desconhecia aqueles homens, por que o perseguiam? E, que diabos, bonecas?! Pela primeira vez no dia sorriu. Pensou na namorada, ela sorria na foto sobre a mesa, virou-se para contemplá-la. A essa hora estaria em algum daqueles cafés de Roma, ela adorava café. Eles. Tomou o último gole. Heitor veio esfregar-se em suas pernas. Era o gato. Querendo comer, certamente, e com muita razão. Miou. Gostou de ouvir algum som afetuoso. Acariciou os pêlos de Heitor. Macios. Heitor parecia gostar, presumia-se um sorriso. Pensou na namorada novamente, desta vez teve a sensação de senti-la. Macia. Heitor miava agora repetidamente. Será que quer comer? Foi ver se achava aquela ração, mas não lembrou onde Bruna dissera que guardava. Teve uma idéia fabulosa: pegou um pires, pôs leite. Heitor enrugou a testa. Por um breve instante ambos miraram o leite. E slept, slept, slept, soou a pequena língua de Heitor esvaziando o pires com sua pequena língua. Esvaziou. Ficou olhando pro gato, o gato pra ele. Definitivamente Heitor não estava satisfeito. Lembrou que ontem não havia lhe dado nada do que comer, ou... beber. Talvez nem anteontem, será? Foi buscar no armário um prato de sopa.
Foi quando contemplava com interesse e espanto a cena do alvo Heitor de bigodes leitosos dando conta do segundo prato fundo que tocou o telefone. Absorto, apercebeu-se só no sétimo toque, quando o gato deu-se por satisfeito aparentemente. Foi atender.
Grovska?
Heitor enrugou a testa.
quinta-feira, outubro 05, 2006
Sem sentido significa correr pelas pedras da pouco perspicaz alvorada para aos poucos rangir dentes no asfalto ensangüentado. De abril correm moinhos que gelam ao tempo de comadres. Na sombra ou ao largo, choram bombachas e tremem seus sóis, pois sois sentado na primeira de todas. Clapem pelo jugo, meus entes, pois pelados foram quase todos, e argumento que sequer senti.
Entrou de repente e pedalou o máximo que pôde com ânsia de lacrimar. Ao próximo destacou e mesmo de posse rugiu para o lençol. Pouco sacana, mas assomou de pronto e, dueto, sorriu com a bizarrice do comparsa.
- Forte pasto metal
- Aquece na mente que bóia carrega de pronto, e sonho padece exaurido
- Mas fronte que passa é garrafa silêncio
- Noturna se muito, prefiro galega
Passava de bote e tempo de mato. Arfante começo de fina planura, que segue e soga mas deixa atalho. De dois ou três voltava ao mesmo e luz forçando não livra de beiços. A torta malhada se gritou baixinho, molhando invejas de quarta zunindo.
- Não para de rir e pensa que voa
- Se penso ou dispenso, revogo de fé
- Mas carta é só, e espaço corrente
- Fico tenente que logo me sano
Tristeza surgiu, da risada do outro. Nuvem deixando a sala, e música voltando ao ouvido. Em torno, cansaço e sorrisos. Na mesa, garrafa pela metade, ainda dá mais um gole, que segue embalando o rumo. Pouco de versos que enrolam um pouso, mas de cordas a mente se volta. A cabeça já pensa sozinha, já pode pegar de volta as rédeas. Ainda volteia, mas olha em volta e vê a baderna. Mas tem tempo, amanhã se preocupa em arrumar as coisas da viagem.
quarta-feira, outubro 04, 2006
Olhos nos Olhos
Independente do que sentia, não podia continuar com aquilo. Sabia que seria difícil, mas logo logo passaria. Sempre passa.
Vítor saiu de casa com a cabeça feita. Já tinha uma boa desculpa e preferia fazer direto, sem rodeios. Machucar de uma única vez, que nem injeção. A enfermeira chamava sua atenção para uma ilusão ou um brinquedo, qualquer coisa. Quando se dava por conta, já tinha sofrido a vacina, tudo acabara, só restava um fundo gelado de picada, que logo desaparecia. Faria assim, melhor prá todos.
Ele amava Roberta, e isto não podia negar. Passaram bons momentos juntos, davam-se bem. Tinham gostos parecidos, não tinham problemas para ir ao cinema ou escutar música, eram prazerosos seus diálogos. Mas, ela era fresca. Era isso, e ele não admitia tal coisa. Churrasco, tinha que levar picanha e queijinho, no qual os amigos, não só por gula, mas por implicância justificada, atracavam-se sem pudores. Não acampava e peixe tinha que ser com grife: linguado ou salmão. Se fosse seu amigo, certamente seria implacável na arriação.
Ao entrar no carro, sentiu-se mal. Era medo. Igual a quando correu do cachorro do seu Anselmo, com todos torcendo por ele do outro lado do portão, ou quando deu-se conta de que o pai não ficaria mais curado, que era somente uma questão de tempo. Os membros não respondem, o estômago embrulha, o suor é frio. Calmou, pensou novamente e lembrou de todos os argumentos que já tinha usado para se convencer. Girou a chave e seguiu seu caminho. Trocar o Cd. Led Zeppelin não combina com seu momento. The Cure. Filho da puta apressado, não pode esperar? Não era isso que queria pro momento, não essa melancolia. Precisa de outra. Que que será que quer? Stones não, definitivamente. Chico! Era isso, perfeito para todas as ocasiões onde há mulher na jogada. Puta, tá amarelo, vou ou paro? Caralho! Travou
...
Dor, arde, puta que o pariu, ahhhhhh, merda, que que é isso? Tá louco? Embrulho no estômago. Vontade de vomitar. Doi, muito frio.
...
Não andar? Melhor morrer? Puta merda meu. Um segundo e isso? É assim? Cadeira de rodas, depender dos outros. Vai ser assim? Paraplégico. Caralho de som do carro. Custava prestar atenção, merda. Foder, nunca mais?! Puta que o pariu. Ninguém mais vai me querer. Vou ficar sozinho pro resto da minha vida. Acabou a minha vida. A Roberta, será que ela vai continuar comigo?
Vítor saiu de casa com a cabeça feita. Já tinha uma boa desculpa e preferia fazer direto, sem rodeios. Machucar de uma única vez, que nem injeção. A enfermeira chamava sua atenção para uma ilusão ou um brinquedo, qualquer coisa. Quando se dava por conta, já tinha sofrido a vacina, tudo acabara, só restava um fundo gelado de picada, que logo desaparecia. Faria assim, melhor prá todos.
Ele amava Roberta, e isto não podia negar. Passaram bons momentos juntos, davam-se bem. Tinham gostos parecidos, não tinham problemas para ir ao cinema ou escutar música, eram prazerosos seus diálogos. Mas, ela era fresca. Era isso, e ele não admitia tal coisa. Churrasco, tinha que levar picanha e queijinho, no qual os amigos, não só por gula, mas por implicância justificada, atracavam-se sem pudores. Não acampava e peixe tinha que ser com grife: linguado ou salmão. Se fosse seu amigo, certamente seria implacável na arriação.
Ao entrar no carro, sentiu-se mal. Era medo. Igual a quando correu do cachorro do seu Anselmo, com todos torcendo por ele do outro lado do portão, ou quando deu-se conta de que o pai não ficaria mais curado, que era somente uma questão de tempo. Os membros não respondem, o estômago embrulha, o suor é frio. Calmou, pensou novamente e lembrou de todos os argumentos que já tinha usado para se convencer. Girou a chave e seguiu seu caminho. Trocar o Cd. Led Zeppelin não combina com seu momento. The Cure. Filho da puta apressado, não pode esperar? Não era isso que queria pro momento, não essa melancolia. Precisa de outra. Que que será que quer? Stones não, definitivamente. Chico! Era isso, perfeito para todas as ocasiões onde há mulher na jogada. Puta, tá amarelo, vou ou paro? Caralho! Travou
...
Dor, arde, puta que o pariu, ahhhhhh, merda, que que é isso? Tá louco? Embrulho no estômago. Vontade de vomitar. Doi, muito frio.
...
Não andar? Melhor morrer? Puta merda meu. Um segundo e isso? É assim? Cadeira de rodas, depender dos outros. Vai ser assim? Paraplégico. Caralho de som do carro. Custava prestar atenção, merda. Foder, nunca mais?! Puta que o pariu. Ninguém mais vai me querer. Vou ficar sozinho pro resto da minha vida. Acabou a minha vida. A Roberta, será que ela vai continuar comigo?
Primavera
Esperava mais de um dia tão bonito. Como mais não viria espontaneamente, tratou de providenciar na marra.
terça-feira, outubro 03, 2006
Eus poéticos
as pessoas dizem de tudo
mas o pessoa diz como poucos
e disse, do poeta, fingir dor
mesmo a dor que deveras sente
pessoalmente, digo mais
não só finge como dita
ditador
e o que lhe causa a poesia
leitor
é a agonia de tua liberdade
grita ela sobre cada verso
num universo paralelo
não havendo poética impessoal
não há obrigações com ética
ou revelações altruístas
cada verso e toda estrofe
é para uma pessoa só e implícita
mas o pessoa diz como poucos
e disse, do poeta, fingir dor
mesmo a dor que deveras sente
pessoalmente, digo mais
não só finge como dita
ditador
e o que lhe causa a poesia
leitor
é a agonia de tua liberdade
grita ela sobre cada verso
num universo paralelo
não havendo poética impessoal
não há obrigações com ética
ou revelações altruístas
cada verso e toda estrofe
é para uma pessoa só e implícita
segunda-feira, outubro 02, 2006
Caminhou durante bom tempo pela estrada. Muito tempo para dizer a verdade, não estava acostumado. O chão batido, pedras soltas parecia não ter mais fim, mas a paisagem era agradável, não podia negar. Pelo menos os tucanos, dois, que nem importaram-se com sua presença, foram um espetáculo a parte. Soltos, lindos, misturando-se aos vários tons de verde do mato vizinho.
Estranho experimentar situação tão pacificadora na situação em que se encontrava. O corpo doía muito, precisava respirar devagar, filhos da puta. Mas não era provável estar muito longe da vila, não tinha passado tanto tempo dentro do carro. Será que dormira? Aquele jagunço de merda não brigou limpo. Não que tivesse vencido de outra maneira, nunca foi um brigador. Sempre foi melhor na conversa, e mais de uma vez achou conveniente voltar prá casa com o orgulho avariado, mas com os dentes no lugar. Filhinho de papai fiadasputa. Botando banca, botando marra. Pisando firme no salão só porque é filho do homem. Caralho. Quer um harém prá ele? Quem que pensa? Não ia baixar a cabeça, nem a pau.
Finalmente, depois de horas caminhando (na verdade, não tinha muita noção de tempo, sem relógio, celular, ficava completamente perdido) avistou uma cabana. Casebre. Longe da estrada. Finalmente, ajuda, água para a sede e para o corpo. Ainda não era um telefone, não havia fios por perto.
Será que pega celular por aqui? Acho brabo. Assim que der jeito, volto lá e aqueles merdas me pagam. Tudo preso. Acham que são donos do mundo? Acham que aquele fim de mundo é o mundo. Não perdem por esperar.
Na casa, o cachorro ladra, mas o guri vem prender. Chama pelo pai, que andava por perto. A velha vem acudir, que o homem tá pisado. Deitam ele e providenciam um de comer. Mas, o que que, ainda que mal lhe pergunte, o que que houve ao senhor...?
Marcos, professor do colégio no Rolantezinho. Me desculpa a falta de educação, com a confusão, não me dei por conta e não me apresentei. Pois foi que teve baile ontem, no salão do Bola. Fui conhecer, que sou professor, mas não tenho senhora. Quando o baile já tava acontecendo, resolvi conversar com uma moça, bem simpática, Ana Cecília, e chamei prá dançar. Foi quando Zé Túlio, filho do prefeito veio tirar as caras. Parece que tinha interesses na moça. Mas, como ele já tava de gracejo por uma, se rindo todo, resolvi argumentar que não tava fazendo mal algum em conversar com Ana Cecília. Não tive nem tempo de escolher baixar a cabeça ou comprar briga. Surgiu um bronco de porrete na mão, nem sei de onde, e sentou o sarrafo. Apanhei que nem cachorro. Protegi a cara e güentei. Depois que caí, mais de um bateu, mas nem vi quantos. O senhor veja a safadeza das pessoas, como tem gente que não vale nada nesse mundo.
Ficou um silêncio. A mulher ficou quieta, o capiau ficou quieto. Nem o cachorro latiu. Pediu desculpa, mas que eu pegasse rumo.
Estranho experimentar situação tão pacificadora na situação em que se encontrava. O corpo doía muito, precisava respirar devagar, filhos da puta. Mas não era provável estar muito longe da vila, não tinha passado tanto tempo dentro do carro. Será que dormira? Aquele jagunço de merda não brigou limpo. Não que tivesse vencido de outra maneira, nunca foi um brigador. Sempre foi melhor na conversa, e mais de uma vez achou conveniente voltar prá casa com o orgulho avariado, mas com os dentes no lugar. Filhinho de papai fiadasputa. Botando banca, botando marra. Pisando firme no salão só porque é filho do homem. Caralho. Quer um harém prá ele? Quem que pensa? Não ia baixar a cabeça, nem a pau.
Finalmente, depois de horas caminhando (na verdade, não tinha muita noção de tempo, sem relógio, celular, ficava completamente perdido) avistou uma cabana. Casebre. Longe da estrada. Finalmente, ajuda, água para a sede e para o corpo. Ainda não era um telefone, não havia fios por perto.
Será que pega celular por aqui? Acho brabo. Assim que der jeito, volto lá e aqueles merdas me pagam. Tudo preso. Acham que são donos do mundo? Acham que aquele fim de mundo é o mundo. Não perdem por esperar.
Na casa, o cachorro ladra, mas o guri vem prender. Chama pelo pai, que andava por perto. A velha vem acudir, que o homem tá pisado. Deitam ele e providenciam um de comer. Mas, o que que, ainda que mal lhe pergunte, o que que houve ao senhor...?
Marcos, professor do colégio no Rolantezinho. Me desculpa a falta de educação, com a confusão, não me dei por conta e não me apresentei. Pois foi que teve baile ontem, no salão do Bola. Fui conhecer, que sou professor, mas não tenho senhora. Quando o baile já tava acontecendo, resolvi conversar com uma moça, bem simpática, Ana Cecília, e chamei prá dançar. Foi quando Zé Túlio, filho do prefeito veio tirar as caras. Parece que tinha interesses na moça. Mas, como ele já tava de gracejo por uma, se rindo todo, resolvi argumentar que não tava fazendo mal algum em conversar com Ana Cecília. Não tive nem tempo de escolher baixar a cabeça ou comprar briga. Surgiu um bronco de porrete na mão, nem sei de onde, e sentou o sarrafo. Apanhei que nem cachorro. Protegi a cara e güentei. Depois que caí, mais de um bateu, mas nem vi quantos. O senhor veja a safadeza das pessoas, como tem gente que não vale nada nesse mundo.
Ficou um silêncio. A mulher ficou quieta, o capiau ficou quieto. Nem o cachorro latiu. Pediu desculpa, mas que eu pegasse rumo.
Esquisofrenia curada
A partir de Hume (1741-42) e Smith (1776), surgiu a visão, amplamente difundida nas ciências econômicas, de que a maior parte das pessoas age perseguindo seu próprio interesse ao invés do interesse público. Enquanto isto, as ciências políticas continuaram assumindo que os agentes políticos estavam principalmente preocupados com a busca do interesse público. De acordo com essa visão, o indivíduo que compra e vende itens no mercado, agindo de maneira egoísta ao buscar a maximização de seu bem estar, muda o seu comportamento no momento de uma eleição, votando em políticos e leis que, ao invés de beneficiá-lo, beneficiam a nação como um todo, ou, ao tornar-se um político, toma decisões moralmente corretas ao invés de comportar-se privilegiando grupos de interesse que o financiam ou apoiando políticas que o levarão a reeleição. O que a teoria da escolha pública faz é dispensar a dicotomia entre um homem econômico e um homem político, passando a considerar que os indivíduos engajados em atividades de mercado e em atividades políticas agem sob as mesmas motivações em ambos os casos.
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