sexta-feira, maio 26, 2006

Prólogo para um livro de receitas

Há alguma coisa entre a fome e a gula - tem de haver. Algo que transite entre a prosaica necessidade de meros componentes químicos e o prazer excêntrico de desencontrar-se na superabundância de alimentos, de esquecer-se na vastidão da mesa. Pois não é este aniquilamento nem aquela casualidade que se apresenta à mesa, quando, ao seu redor ou pelo menos à sua proximidade disposto, está este seleto grupo de amigos bem sentados em cadeiras, poltronas, sofás ou, eventualmente, banquinhos. Seleto, como não poderia deixar de ser um grupo que faz jus à alcunha da amizade, a mais verdadeira - os irmãos que escolhemos, como se costuma dizer.

Compõem esse rico ajuntamento o Ricardo e a Zéti (meus pais), o Paulo e Neusa, o Nicola e a Lisa, o Charles e a Marta, o João e a Zezé, por vezes mais alguns compadres ou filhos, todos formando essa reunião de pessoas, não por acaso, há mais de duas décadas preservando a amizade tal qual o vinho é preservado em barril de carvalho, assim adquirindo mais virtude, oxigenado na exata medida de melhor ser desfrutado. E em cada mês bebe-se deste vinho, alternando-se os lares, sempre o mais aconchegante que os anfitriões podem oferecer. O leigo conhecimento acerca dos vinhos não me possibilita outras metáforas certamente existentes, e esse exercício reservo humildemente às próximas páginas que eles mesmos, ingredientes imprescindíveis deste caldo, trataram preencher.

Discorri sobre o tempero que permeia essas celebrações mês após mês. Muito provavelmente porque outra coisa não pudesse dizer sobre a matéria - devo admitir que eu quero ser assim quando eu crescer, todavia, hoje, não vou muito além de um bife bem passado (alguém aceita?). Decerto que os jantares aqui descritos, antes de provocar salivação em massa nos leitores, terão satisfeito os espíritos desses gaúchos de bom garfo e coração. Mas que não se engane o desavisado: tal contentamento é provisório, pois, bem como observou Guimarães Rosa, "satisfeito, o animal dorme". Esses homens e mulheres, que aqui escrevendo suas receitas também compõem suas histórias, correm de tal inércia e, insaciáveis, vão pondo no forno a segunda edição, enquanto você degusta esta.

Bom apetitchê!

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