domingo, outubro 28, 2007

O isento

Diorando era um cara isento. Absolutamente isento. Dizia-se, tão isento que quando o encontraram de revólver à mão e camisa coberta de sangue, ao lado do corpo estirado de sua esposa, arquivaram o caso por falta de provas. Tampouco devia ser sua mulher. Uma mulher estranha, não se poderia crer companheira de Diorando, cidadão tão ilustre. E isento. O grande jornalista do país, Diorando era tão isento que lograra ser o único correpondente internacional que mantivera residência no Brasil. Os fatos e Diorando eram água e óleo, não se misturavam. Afinal, seu trabalho era contá-los, descrevê-los com maestria e neutralidade. Diorando olhos de águia. Mantinha-se longe, afastado dos acontecimentos. Era sua receita para o refinamento periodístico. Quando indagado, Diorando era magistral em seus rodeios e floreios de não dizer nada. O distintivo de sua isenção libertava-o da tarefa ordinária de opinar. Diorando não conversava, disparava veredictos. E aquilo que proclamava era tão original e puro que havia até igreja levando seu nome. Mas Diorando não se prestava a dar sermões, muito menos meter-se com política. No entanto, era conhecido em todos os meios, entre legisladores, artistas, arcebispos e funcionários públicos. Para o povo é que era um deus encarnado. Camarada imaculado, livre de todos os pecados da carne. A carne que se confunde na carne, a carne de todas as paixões, dos medos e hesitações. Era coisa linda de ver, Diorando caminhava pelo meio das ruas com o semblante sempre resoluto, como se faixas de segurança acompanhassem seus passos continuamente. O trânsito, a cidade, o mundo parava para vê-lo passar, o Diorando. Cidadão incólume, irrepreensível. Diorando rejeitara até mesmo o desapego. Era sua inclinação inata não apegar-se, de modo que lhe seria estranho desprover-se de algo que nunca tivera.

Ah, irrepetível Diorando. Quantos motivos para esquecê-lo.

Ah, célebre Diorando. Por só crerem em ti é que te desacredito.

2 comentários:

Anônimo disse...

ótimo!

Felipe disse...

Este comentário só chega depois da terceira leitura.
Sujeito interessante esse Diorando. Algumas pessoas são assim mesmo. As chamadas pessoas de bem, de quem "não se pode pensar uma coisa dessas"!
Abraço