Toda fantasia começa com um menino no centro da cena.
Que não conhece o mundo a sua volta, então inventa.
Subitamente, a fantasia acaba. Sons de teclados, fragmentos de diálogos das salas vizinhas, o ventilador de um computador, o silêncio que não tem origem, tudo se mistura freando o passar do tempo. Inquieto, mudança brusca de ambiente, o conforto do mesmo cede lugar à mudança. Hábito ou vício? Tudo isso por uma economia burra. Um canal dos meus fones de ouvido estraga, e toda a realidade reaparece, real.
Ah, os acordes da realidade! Emudecem uns ao outros - o turbulento silêncio que, proclamando a ditadura da liberdade, torna-nos surdos à verdade.A cena agora é a de um comício, que dará origem a uma passeata. O recado final, dado por um dos homens do palanque, não poderia ser outro. Ouvem todos o que querem ouvir, a liberdade aos gritos, e saem apressados a correr o mundo - a catequizar os leigos. Um dos homens corre à sua vila e proclama - "estamos todos livres!", e o povo passa rapidamente de desconfiado para igualmente extasiado - "livres!". Que bênção! O grande dia! Visitam-se as portas de todas as casas. A família que estava reunida em volta da tv até esquece da novela por um instante. Pareciam eles mesmos estarem dentro de uma, coisa estranha, até então sua memória dava conta de uma liberdade comunicada à margem de um longínquo rio, ao sol de um longínquo tempo, por um homem em seu cavalo empunhando sua espada, como mostrava uma figura num livro de história do colégio. O caçula abre a boca e profere sua primeira palavra em língua portuguesa, com uma voz fresca porque nova, doce porque ingênua - "liberdade", e arranca a cabeça da boneca da irmãzinha.
Caminham todos felizes pela boa nova, a euforia leva-os para frente. Alguns gargalham pela simples visão da alegria de seus pares. Nada pode contê-los a partir de agora. Até que um rapaz muito tímido, sempre contemplativo, sempre chamado de abobalhado na surdina pergunta com a voz tão insignificante quanto a sua presença: e para onde vamos agora? Como assim? Somos livres, não precisamos dar satisfações! Todos condenam o pobre, mas não gargalham mais, nem ao menos continuam seu caminho. Já não sabem mais livres de que, ninguém é capaz de responder o que exatamente os prendia. Livraram-se da ilusão, precisavam agora livrar-se da realidade. E, no meio da multidão desorientada, uma boneca sem cabeça é pisoteada sem nem ao menos ser notada.
Desliga a tv com a imagem, estranhamente dolorosa, da boneca pisoteada fixa em suas retinas, e permanece imóvel. Lembranças de uma revolução. A tão falada revolução que não viveu e sobre a qual seus pais parecem ter feito um pacto de silêncio. Talvez por isso não estivessem agora naquela sala. Uma revolução inventada, a vergonha de uma geração.Ele nunca tivera bonecas, nem mesmo irmãs que as tivessem, e, se fosse bem sincero à sua memória, notaria uma escassa infância que ainda mal desfrutou. Carrinhos e bolas lhe escapavam. Talvez por isso a boneca decepada lhe atingira o peito como um assombro que vem e rouba o ar e suspende o corpo - foi por uma mistura de aflição e fascínio, num reflexo, que apertou o off.Na tv ainda se viam desenhados, na parte inferior direita, os contornos de um corpo genérico, mas sem uma generalidade básica, ausência esta que lhe dava calafrios. Sentiu-se inseguro e desamparado. E ainda mais devido à sua imobilidade irreversível. Uma eternidade se passou até que alguém entrou na sala.
Muito bem crianças, hora do passeio no pátio. Aproveitem que o sol está lindo.
Ver a televisão era um momento bastante esperado por todos seus colegas e por ele também. Mas naquele dia a experiência tinha sido completamente diferente. Aquela imagem era diversa de tudo que já tinha visto. Imagens da glória da libertação eram comuns, não era aquilo que despertava sentimentos contraditórios em seu peito. Era a boneca que apareceu no filme, sem ser notada por mais ninguém. Poucos segundos, num canto da tela, e sem cabeça. Já tinha brincado com uma daquelas uma vez na sala de jogos. Já tinha estado lá sete vezes, e lembrava de cor de cada uma delas. Na última, tinha sido um dos melhores da turma naquele ano. Orgulho! Pôde brincar com um carrinho sem fio! A imagem não lhe saia da cabeça, podia sentir até agora o poder de dirigir aquele carro que se movia como num passe de mágica, pelo mero apertar de botões. Mas aquilo não fazia sentido, não havia brinquedos antes da libertação. As crianças trabalhavam naquele tempo por todo o tempo. Como haveria uma boneca na rua, ignorada e destroçada daquela maneira? Algo estava errado. E aquilo embrulhava o estômago.
À noite, a tensão já tinha ido embora junto aos últimos raios do entardecer. Um vento suave mas gelado como que o anestesiou por completo, e, agora, um único sentimento brotava do fundo de sua alma. Na verdade, melhor seria dizer que não se percebiam as raízes daquela sensação que mais parecia um gigantesco nada, tão profundo e infinito como o negro céu sobre sua cabeça, tão trespassante como aquele minuano. Sua dor desta vez não era sentida, era, antes, impossível, da mesma maneira que sua própria existência lhe parecia infactível. Teria pensado, se naquele momento pudesse pensar, em todas as perguntas que ao mundo pudesse fazer. Divorciado de seus sentidos, quem sabe tenha desejado apenas que aquela noite nunca acabasse, e a reticência compulsória da sua natureza reinasse para todo o sempre.
Silêncio. Silêncio completo. Não dá prá ter silêncio completo. Sempre fica uma vozinha. Não vou pensar em nada ... tão escuro ... dia de TV ... cheiro... ? ... fumaça? ... queria ser adulto prá ficar acordado... droga! Não consigo ficar sem pensar. Sempre fica alguma coisa. Será que alguém consegue? O Rafael acha que pode tudo, abobado. Aposto que nem ele consegue. Tomara que amanhã tenha suco no café... suco no café? A gente diz café, mas não é sempre café... coisa louca... estudar prá ser importante. Queria saber jogar, correr, sei lá. Aí podia ser importante sem estudar... pena que não pode ligar a luz ... bomba ... e a professora? Ela é muito mais esperta do que o Rafael, me ensinou tudo que eu sei, vai que ela sabe não pensar também? Aí pode ouvir o silêncio, mas deve dar medo, ficar sozinho, sem nem a tua cabeça, mas não pode dar medo, senão não é silêncio, aí já pensou, então como é? ... fez frio mas tava bom brincar, correr esquenta, mas eu canso, droga, coisa sem graça, aí ninguém me escolhe pro time, mas eu sou bom em história, ninguém vai melhor que eu, mas ninguém se importa com aula, mas a professora me elogiou! ... hoje teve TV depois da oficina ... aquela boneca ... quem não ia ver? Nem se importaram, e ela tava sem cabeça ... uma vez vi matarem uma galinha ... festa ... quebraram o pescoço e depois cortaram a cabeça ... assaram ... ... escuro ... amanhã tem... que morno... ... galinha ... ... ... boneca ... ... morno ... ... ...
Está ficando muito tarde - pensou, quando deu-se por si. Caminhou de volta à casa. No trajeto, deteve-se, como de costume, um breve tempo na pracinha longe dois quarteirões de sua casa.O orvalho escorria silencioso pela gangorra. O balanço movia-se levemente, mas não a ponto de se fazer ouvir. Chegou ao centro da pracinha e tomou assento no gira-gira. Depois, ainda que este estivesse úmido, deitou-se, com o corpo pequeno que facilmente se adaptou à forma circular do brinquedo. Com a ponta do pé esquerdo fez força para conseguir embalo, e começou a girar com velocidade cada vez maior, até não precisar mais dar impulso. Sua visão era a de um céu em espiral, as estrelas fundindo-se e se separando como se fossem cometas cruzando-se. O negro profundo do espaço ganhava ares de mistério, como o interior impenetrável de uma caverna. Agarrou-se com mais firmeza ao metal, tinha a sensação de que poderia perder-se pra sempre caso voasse dali e fosse engolido pela escuridão. Fechou os olhos, dentro de si ainda era quente.O gira-gira foi perdendo velocidade, parou. Abriu os olhos, o céu sobre si ainda girava, confuso. Com esforço levantou-se. Andou alguns passos até sentir novamente o frio da noite, sua única companhia ali. Dirigiu-se à gangorra. Abaixou a ponta que estava no alto - estava mais seca - e se sentou, primeiro mantendo-a equilibrada através das pernas, depois, baixando aos poucos, até fazer chegar ao chão. Pôs-se a mirar a ponta oposta, agora em situação diversa, no ponto alto. Por um momento, quis que alguém estivesse ali com ele - nem que fosse o Rafael -, só para sentir-se mais longe do chão, no ar, como a estrela que brilhava em linha reta com a ponta oposta. Um peso para a leveza. Sempre sonhara em voar...A umidade veio concentrar-se em sua direção. Pensou na força da gravidade, tão constante e silenciosa. A professora havia explicado com uma maçã. A mesma maçã sobre a qual falara a tia da catequese, pra falar de pecado, mas isto ele não havia entendido bem. A gravidade sim. Levantou-se. Já estava se molhando demais.
O pecado é bem mais confuso. Porque o pecado é mau. Mas, quando é pecado, é porque tá bom. Se é ruim, se eu não gosto, se machuca, não é pecado. Ficar dormindo até mais tarde quando tem serração é pecado. Contar prá todo mundo que eu acertei tudo no ditado é pecado. Pecado mesmo é a Rita, eu não sei bem porque, mas sinto.Coruja curiosa, parece deus espiando prá me ver pecando, olhos arregalados grudados em mim.Coruja de sobretudo, esperando eu pensar maldade para me prender em suas garras.Calças geladas. Molhadas. Não posso me trocar... fazer barulho nem pensar. Se se dão conta que me escapuli... melhor frio do que surra. Não sei. Surra passa logo, frio rasga.Rasgando carne, trincando ossos, frestas tão pequenas espantam um sono que o cansaço convidou com tantos folguedos. Silvando baixo, intermitente, parecia estar por todos os lados. Sobretudo, os olhos crescem no escuro, fixos, inquirindo, lendo tudo, até o que fica lá no fundo. A gangorra tão conhecida toma proporções assustadoras quando sobe, o equilíbrio acaba, e o abismo não parece ter fundo. Queda sem fim, nem fim no tempo, nem fim no espaço. Concomitantemente, tudo no mesmo ponto, no mesmo instante. Silêncio igual teria duvidado pouco tempo atrás, tudo junto muito longe.Escureceu.
A mãe achou que tivesse mijado nas calças, o que não deixou de mencionar à mesa do café-da-manhã. Engoliu a vergonha com pão e leite, mais dificilmente porque era simulada. A irmã menor lançava-lhe um olhar incômodo. Lembrou-se da coruja - já não sabia se tinha sonhado com ela ou se a vira de fato na noite anterior. O olhar silencioso e perturbador que inquiria a solução de seus enigmas. Enigmas que ele mesmo não saberia resolver.O pai fechou o jornal, levantou-se. Era o sinal, todos para o carro.Alguma notícia importante, pai?O pai manteve-se quieto e muito sério.Sim, havia uma. Mas o pai de Israel não havia gostado nem um pouco dela.
Não era exatamente uma notícia, era antes um aviso disfarçado na seção de variedades. Mas não havia dúvidas de que era ele.
Não havia mais volta. Tinha começado.
Com sorte, talvez ninguém o reconhecesse, ou, pelo menos, não alguém que fizesse caso com o contexto da foto. Mas era, definitivamente, um aviso, um último recado que pedia com urgência uma atitude. Mesmo a legenda estava cheia da perspicaz ironia de Flávia, dizendo tudo, quase sem dizer. Mas como, diabos, ela conseguira aquela foto? Olhou o retrovisor, sentindo-se vigiado e, depois, desprotegido, apesar de que, aparentemente, a rua estivesse deserta. Israel não deixou de perceber a aflição calada do pai. De um certo modo, isso lhe acalmou um pouco. Afinal, não eram simples bobagens de criança aqueles sentimentos que lhe tomavam. Seu pai parecia ter mil segredos dentro de si, quem sabe colecionados ao longo da vida toda. Que ele, Israel, faria com os seus? O céu, as estrelas, a lua, todos confidentes que lhe entendiam como se parte dele fossem. Restava-lhe ainda uma vontade de que, não só que o ouvissem, respondessem às suas indagações ou ao menos compartilhassem seus mistérios de forma menos silenciosa.A irmãzinha puxou seu cabelo, já estava virando costume. Antes que Israel revidasse de alguma forma, porque criança nunca deixa barato, a mãe interveio, falando firme com a caçula. A pequena Samira queria atenção, e a cabeça de Israel era a única ao seu alcance. Talvez mais alguns poucos anos e já pudessem conversar sobre isto de caminhar com as próprias pernas.
Sua primeira providência era tirar todos dali. Não queria sua família envolvida, eles não precisavam saber de nada... seria melhor para todo mundo. Ela não tinha o direito. Diabos, tinha sim, e ele esperava por aquele dia, sabia que chegaria.Apesar da raiva e do medo que tomavam conta, a sutileza com que foi feito lhe dava um conforto estranho. Uma lembrança boa de Flávia. Todo o tempo que passaram juntos, não foi só sexo, e também não foi uma simples amizade, um simples namoro. Tinham um duelo permanente, estavam sempre desafiando um ao outro, sem nunca deixar isto claro. Eram desafios intelectuais ou morais cuja principal característica era exatamente que cada um se esmerava para que a afronta não fosse claramente percebida. Era um jogo de dissimulações, mas era antes uma disputa de egos. Quem tinha o senso de humor mais requintado, tão requintado que ninguém mais poderia perceber que ali havia humor. Admirava Flávia e sabia que era recíproco.Precisava deixá-los em lugar seguro, iriam atrás dele com certeza, o que significava separação. Da esposa não tinha grandes problemas. Gostava dela, era uma boa pessoa e tinha consciência de que ela o amava. Mas separar-se dos pequenos seria um martírio. Notava em Israel as mesmas inquietações que sentia quando era um guri. Pensativo, mas ao mesmo tempo dissimulado, ele não fazia perguntas. Não externava perguntas, bem entendido. Aquele olhar vazio não enganava. Sozinho, era bem capaz de acabar como o pai.Ao mesmo tempo, Israel sentia os olhos da coruja cada vez mais perto. A testa do pai estava suada, e ele preferiu ficar quieto. O pai não respondeu para onde iam. Não perguntou duas vezes, tinha aprendido que era melhor fingir que estava tudo bem. Ninguém gostava de fuxiqueiros. Ele não, pelo menos.Estava enferrujado, não estava mais acostumado a estas fugas. A última tinha sido sua grande peça em Flávia. Claro que tinha todo o contexto da libertação, as cartas e tudo mais. Mas sabia que ela não deixaria barato, pregaria uma muito maior.O primeiro carro cortou a frente deles. O segundo chegou logo em seguida, ninguém viu de onde surgiu. Saíram três homens com uniformes dos libertadores de cada um deles...
Israel acordou e não reconheceu o quarto. Não era um quarto da zona habitacional. Nem era como os da escola, que tinham beliches e grandes janelas. Este tinha cortinas, suas paredes eram pintadas, era bem bonito e grande. Sua cama era a única ali. Ainda assim, era bem maior que o quarto de sua casa, onde dormiam ele e sua irmã. Por falar nela, não estava ali. Nem ela e nem seus pais.
Depois que os libertadores os fizeram descer do carro, a irmã começou a chorar. Um deles, que parecia mais novo do que os outros, mas que era, definitivamente, o chefe, avisou calmamente minha mãe que a criança deveria calar-se, caso contrário, eles o providenciariam. O pai só precisou olhar Samira nos olhos e ela compreendeu e ficou em silêncio. Não trocaram mais nenhuma palavra durante todo o trajeto. Foram conduzidos a algum lugar nos fundos de um furgão, rodaram por horas. Durante todo este tempo, Israel teve medo. Ainda sim, não pode deixar de ficar pensando no primeiro carro que os parou. Nunca tinha visto um daqueles. Chegou muito rápido, parecia rápido até quando parado. E ele ficara extasiado com aquilo. A esses pensamentos, de curiosidade e fascinação infantil, juntavam-se pensamentos de que aquela estrela lhe disse alguma coisa. Voaria, não tinha dúvidas. Olhou para seu pai com saudades. Sabia que tudo aquilo era por causa dele, provavelmente nunca mais o veria. Esperaram todos sentados no banco de uma grande garagem. O pai parecia resignado e sua mãe tinha os olhos vermelhos. Chorara baixinho na traseira do furgão. A irmã estava grudada no colo da mãe e parecia em choque. Desde que o pai a repreendera com os olhos, não abriu mais a boca. Quanto tempo ali ficaram, não saberia dizer. Provavelmente, dormiu no banco da garagem e dali fora levado para o quarto.
Lembrava de ser dono de um urso, um urso dourado. Os fragmentos do sonho ainda eram vivos na sua memória. O urso tinha os olhos tristes e brincava com miniaturas de soldados no pátio. Pequenos soldados de plástico moldado, inanimados, como os que vira no museu de Santa Maria, anos atrás. O amigo urso dispôs os bonecos simulando uma batalha. Verdes contra amarelos, que tinham armado uma emboscada para os primeiros. O pátio era o mais cumprido que já vira. Ainda assim, o urso não cabia ali, ficava apertado, e seus olhos passaram de tristes e chorosos para dotados de uma raiva sem limites. Israel chamava pelo seu nome, Bóris, pedindo calma. Mas a raiva crescia nos olhos de seu amigo animal e o terror do ataque iminente paralisou seu corpo e sua voz. Não podia gritar por socorro e nem ao menos se afastar o suficiente. Nos olhos da besta, uma boneca esfarrapada e decapitada refletia e, em uma das mãos da boneca, o pai chorava de arrependimento.
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Um comentário:
E não é que coube...
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