Adapto a falta de nexo, mas sobram motivos para notar um algo errado. Uma parede que muda de cor, pessoas mortas dançando tango, silêncio num bar, diversos motivos para questionar uma noção amplamente difundida. Sem meios termos, o que mais parece é que estou numa fábula pronta para desmoronar.
Aceito o desafio e sigo adiante, tomando cuidado para desviar de um padre caído no chão. O pobre enlameado contorce-se por uma dor muito forte. O motivo desconheço, se surra ou veneno, se um pecado recém confessado e impassível de perdão. O bafo que desprende e torna densa a caminhada parece até ser dotado de vida. Um bafo verde, úmido e morno, que parece indicar que aquele lugar não é indicado aos passeios. A jornada se desenrola por um caminho de terra, com barro e sons desencontrados. Estranha acústica deste lugar onde tudo soa mais de uma vez, às vezes de um modo surdo, noutras como numa lata de lixo. A jovem marmota, cujos óculos buscam disfarçar seus traços de pouca esperteza conversa com a velha coruja, de voz calma, grave e macia:
- Quem será que vem lá? Certamente não é muito esperto, pois veste meias sem sapatos. Nesta lama que anda por aí, não convém tal atitude.
- Correta sua observação inexperiente amiga. Mas não julgue tão prontamente, pois as meias podem proteger do contato direto com o chão. Sabe-se lá o que este estranho viajante sente ou pressente.
- Pode até ser que não seja possível julgar sua inteligência a primeira vista, mas sua aparência sim, e afirmo que a natureza não foi muito generosa para com ele.
Chego aos dois pequenos animais tagarelas, que me olham com olhares diversos. A marmota me mira por cima de seus óculos, com ar de superioridade. A coruja prefere um olhar de enfado. O mais estranho de todos sou eu, que não atribuo grande importância a dois animais que conversam. Pergunto que horas são:
- Depende para que - responde a coruja.
- Como assim? O horário independe de razão. Depende tão somente do posicionamento solar - respondo eu, sem muita certeza do que digo.
- Isso foi antes. Antes de trocarem o sol.
Dou-me conta de que no lugar do sol há um grande holofote vermelho, formato do logotipo da coca cola. Um patrocínio desfazendo toda uma noção da passagem de tempo. Paciência.
- Preciso seguir, mas não sei para onde. Sabem aonde chegarei por este caminho?
- Qual a diferença se este é o único caminho que existe? - responde a marmota - Se seguir é uma necessidade, a pergunta é praticamente inútil.
- Já que não vejo boa vontade nas respostas de vocês, sigo meu caminho. Não vejo razão para ficar perdendo tempo com essa conversa despropositada.
Sigo com a cabeça baixa, pensando no que acaba de acontecer. Não me importei com o tom claramente hostil da pequena marmota, mas a indiferença da coruja realmente me deixou incomodado. Neste momento, dou-me por conta que meu pé livrou um pouco da lama do caminho, e o que ele mostra é colorido. Limpo um pouco mais e o que é revelado é um padrão flower power. Penso que isto pode estar relacionado com a coruja e a marmota, mas nenhuma das duas me pareceu hippie ou coisa parecida. Esta coisa de flores, cores e paz e amor é coisa do passado. Passado parece ter o tempo, já que me dou por conta que minhas mãos estão enrugadas e um pouco pálidas. As dores no corpo me dão mais pistas, na falta de um espelho. Estou velho, sem dúvidas.
Adapto a falta de sexo, conseqüências da idade já avançada. Caminhar é preciso, mas me faltam ânimo e forças. Já não lembro mais por que caminho e nem ao menos sei se algum dia já lembrei. Mas logo avisto uma multidão. Vou ter com eles, saber o que acontece por aqui. A multidão se agrupa em círculo. No centro, dois homens muito magros e esfarrapados lutam com todas as suas forças. Informo-me sobre o acontecimento:
- Oferecemos um prato de comida aos dois pobres coitados. Mas os dois têm que brigar por ele. O barbudo é bom de soco - diz um rapaz, sem tirar os olhos do espetáculo.
- Eles não poderiam dividir? - Pergunto.
- Mas qual seria a graça então? Idéia estúpida esta sua.
A cena é deplorável. Os pobres diabos estão desesperados e tiram forças que nem supunham ainda ter. O de barba castiga o descamisado, mas este consegue agarrar uma pedra e golpear a cabeça do primeiro. O povo urra com o sangue. O barbudo não se dá por derrotado e consegue voltar a socar o pobre sem camisa. Espanca-o até seu corpo parar de mover-se. Recebe seu prêmio com a mesma gana que utilizou contra seu adversário, agachando-se sobre o prato e utilizando as mãos com destreza para devorar seu alimento. A multidão extasiada afastasse, deixando o corpo sem vida a mostra. O rosto está inchado pelas pancadas, mas inconfundível. É o meu alguns anos atrás.
Aceito o desafio e sigo adiante, tomando cuidado para desviar de um padre caído no chão. O pobre enlameado contorce-se por uma dor muito forte. O motivo desconheço, se surra ou veneno, se um pecado recém confessado e impassível de perdão. O bafo que desprende e torna densa a caminhada parece até ser dotado de vida. Um bafo verde, úmido e morno, que parece indicar que aquele lugar não é indicado aos passeios. A jornada se desenrola por um caminho de terra, com barro e sons desencontrados. Estranha acústica deste lugar onde tudo soa mais de uma vez, às vezes de um modo surdo, noutras como numa lata de lixo. A jovem marmota, cujos óculos buscam disfarçar seus traços de pouca esperteza conversa com a velha coruja, de voz calma, grave e macia:
- Quem será que vem lá? Certamente não é muito esperto, pois veste meias sem sapatos. Nesta lama que anda por aí, não convém tal atitude.
- Correta sua observação inexperiente amiga. Mas não julgue tão prontamente, pois as meias podem proteger do contato direto com o chão. Sabe-se lá o que este estranho viajante sente ou pressente.
- Pode até ser que não seja possível julgar sua inteligência a primeira vista, mas sua aparência sim, e afirmo que a natureza não foi muito generosa para com ele.
Chego aos dois pequenos animais tagarelas, que me olham com olhares diversos. A marmota me mira por cima de seus óculos, com ar de superioridade. A coruja prefere um olhar de enfado. O mais estranho de todos sou eu, que não atribuo grande importância a dois animais que conversam. Pergunto que horas são:
- Depende para que - responde a coruja.
- Como assim? O horário independe de razão. Depende tão somente do posicionamento solar - respondo eu, sem muita certeza do que digo.
- Isso foi antes. Antes de trocarem o sol.
Dou-me conta de que no lugar do sol há um grande holofote vermelho, formato do logotipo da coca cola. Um patrocínio desfazendo toda uma noção da passagem de tempo. Paciência.
- Preciso seguir, mas não sei para onde. Sabem aonde chegarei por este caminho?
- Qual a diferença se este é o único caminho que existe? - responde a marmota - Se seguir é uma necessidade, a pergunta é praticamente inútil.
- Já que não vejo boa vontade nas respostas de vocês, sigo meu caminho. Não vejo razão para ficar perdendo tempo com essa conversa despropositada.
Sigo com a cabeça baixa, pensando no que acaba de acontecer. Não me importei com o tom claramente hostil da pequena marmota, mas a indiferença da coruja realmente me deixou incomodado. Neste momento, dou-me por conta que meu pé livrou um pouco da lama do caminho, e o que ele mostra é colorido. Limpo um pouco mais e o que é revelado é um padrão flower power. Penso que isto pode estar relacionado com a coruja e a marmota, mas nenhuma das duas me pareceu hippie ou coisa parecida. Esta coisa de flores, cores e paz e amor é coisa do passado. Passado parece ter o tempo, já que me dou por conta que minhas mãos estão enrugadas e um pouco pálidas. As dores no corpo me dão mais pistas, na falta de um espelho. Estou velho, sem dúvidas.
Adapto a falta de sexo, conseqüências da idade já avançada. Caminhar é preciso, mas me faltam ânimo e forças. Já não lembro mais por que caminho e nem ao menos sei se algum dia já lembrei. Mas logo avisto uma multidão. Vou ter com eles, saber o que acontece por aqui. A multidão se agrupa em círculo. No centro, dois homens muito magros e esfarrapados lutam com todas as suas forças. Informo-me sobre o acontecimento:
- Oferecemos um prato de comida aos dois pobres coitados. Mas os dois têm que brigar por ele. O barbudo é bom de soco - diz um rapaz, sem tirar os olhos do espetáculo.
- Eles não poderiam dividir? - Pergunto.
- Mas qual seria a graça então? Idéia estúpida esta sua.
A cena é deplorável. Os pobres diabos estão desesperados e tiram forças que nem supunham ainda ter. O de barba castiga o descamisado, mas este consegue agarrar uma pedra e golpear a cabeça do primeiro. O povo urra com o sangue. O barbudo não se dá por derrotado e consegue voltar a socar o pobre sem camisa. Espanca-o até seu corpo parar de mover-se. Recebe seu prêmio com a mesma gana que utilizou contra seu adversário, agachando-se sobre o prato e utilizando as mãos com destreza para devorar seu alimento. A multidão extasiada afastasse, deixando o corpo sem vida a mostra. O rosto está inchado pelas pancadas, mas inconfundível. É o meu alguns anos atrás.
Um comentário:
O que é isso, Felipe? Escrevendo assim? Sensacional! Para ler e reler. E reler.
Continua escrevendo, por favor!
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