quinta-feira, maio 31, 2007

Limites

Infindáveis vezes proclamou de peito aberto sua liberdade. E outras tantas precisou adiar seus planos por pequenos compromissos ou acasos. Desta maneira, Carlos viu seu chão se abrir e seu mundo escorrer pela fenda a seus pés. Seu mundo naquele momento resumia-se basicamente por Maria Teresa, a quem tinha em grande consideração e por quem pensava já ter feito notáveis sacrifícios. Mas, a julgar pelas atitudes (melhor dizendo, pela atitude) da moça, barulho não significa grande coisa para ela.

Maria Teresa não se contentava com palavras, mesmo quanto a grandes gestos ela era retiscente. Ela acreditava muito mais nos pequenos gestos do cotidiano, na vida que se leva quando não se está provando nada para ninguém. E era aí que Carlos falhava, de acordo com os critérios de Maria Teresa. Carlos era dependente. Dependia de sua rotina, dependia dela, Maria Teresa, dependia da aprovação dos pais e dos amigos. Afirmar-se livre era para ele grande feito, mas para ela não tinha valor.
Pois desta vez parecia que era definitiva a perda de Maria por Carlos. Como foram todas as outras, enfim. Mas esta era ainda mais definitiva. Ela esgotara todas as suas paciências (uma das virtudes de Maria Teresa era não ter apenas uma, mas várias paciências). Argumentara e perdera contra uma compulsão. E Maria Teresa queria ser, tinha que ser, a maior compulsão de Carlos. Carlos fumava, mas o fazia só para demonstrar sua independência dos pais (aos 32 anos, convenhamos...). Com isto Maria podia lidar sem grandes esforços.
Maria Teresa não lidava. Não conseguia ser indiferente, não podia. Não conseguira acabar com a mania de Carlos de lavar seu cinzeiro a cada cigarro que fumava. E o cara fumava uma carteira por dia. Não podia ver alguém lavar um cinzeiro 20 vezes por dia e ainda querer explicar que havia lógica por trás disto.

quarta-feira, maio 30, 2007

Prudência, uma palavra (esboço)

Prudência era uma senhora de traços bem marcados. Passara anos longe da vida pública das palavras, quando muito aparecia numa esquecida nota de roda pé. Na fase madura, despontara com vistosas maçãs no rosto. Como era saudável, a senhorita Prudência! E todos vinham à sua janela ouvir suas ponderações. Começava cedinho, mal o galo cantava, faziam fila em frente à casa de Prudência. Eram tempos em que havia algum. Deixavam um agrado, a maioria, mesmo que Prudência não solicitasse. Houve quem fizesse igreja, Igreja da Santa Prudência, que tomou bairros distantes. Facilitava, encurtava caminho, as pessoas conversavam com uma imagem de Prudência e seu olhar interrogativo. A Prudência era amiga das interrogações, respondia com perguntas, sempre. Era bom ouvir suas perguntas, fazia parecer que o tempo nem era urgente. Até o dia em que encontraram Dona Urgência estirada na avenida, atropelada por um corretor de ações. O som das sirenes comprou buzinas e despertadores, até apropriar-se definitivamente dos já desgastados canto do passarinho e correr do riacho. Prudência já não escutava o sino de sua igreja (ainda havia uma, próxima de sua quitinete). Comprou um MP3 player pra melhor ponderar. Investiu em um bom par de fones, não os tirava nem para dormir, e isso era prudente, pois a noite deixara de existir havia um bocado de anos.
A Prudência pensava no sentido da vida, de sua vida. Onde se encaixava sua existência? Ela esmorecia, mas isto não significava que se tornava imprudente. Há palavras de honra. Prudência tateava o ar de uma dimensão que se desinventava.

segunda-feira, maio 28, 2007

O Infante

Tô suspeitando desse cara de zero
que me dá zero motivos
- é um impassível
Diz-me nada e essa pinta absoluta
Passa-lhe o infinito aos olhos
e... resoluto! Impossível!

Ah, se eu soubesse zerar por um instante!
Eu lhe diria como a vida é expressiva
que seu silêncio só quer dizer
e mais não pode
que o poder é ser uno e ter
o infinito em si
mas a verdade é que não entendo
esse cara de zero
mas tô tentando, tô tendendo

meio-par

se par
por que se parte
já no começo

por que separam
param passados
por que se esquecem

partida
por que se parte
por toda a vida

por que não porto
por todo o sempre
por toda parte

por que partir
não é chegada
a cada instante

pela metade
por que o tempo
passa por dois

por que se lembra
parece perto
de não passar

pelos que passam
por que não sei
por que passeiam

perece um gesto
de todo o resto
só resta meio

quarta-feira, maio 23, 2007

Choro

manhã em Porto Alegre
choram os guarda-chuvas

é um choro vertido
como os versos dos desencontrados

há uma falta, uma ausência líquida
a saudade escorre pelas ruas

ninguém se vê
o dia penetra bueiros e vai ter com os ratos

sexta-feira, maio 18, 2007

Força Centrífuga

Fixamente a moça olha para o ponto no centro
Levemente excêntrico
Leva a mente à tensão

Fixação irremediável no centro do disco
Lentamente, arranhado
Lenta sente, do lado de dentro

Passo a passo, posta de lado
Fixa a mente numa besteira qualquer
Não toma mais coragem num só fôlego
Toma um susto indolor

Arrepio qualquer esperando no ponto
O centro vazio deixando o vento soprar
E o escuro, o escuro se fecha
Levemente a rodar.

quarta-feira, maio 16, 2007

Morro Dois Irmãos

Dois Irmãos, quando vai alta a madrugada
E a teus pés vão-se encostar os instrumentos
Aprendi a respeitar tua prumada
E desconfiar do teu silêncio
Penso ouvir a pulsação atravessada
Do que foi e o que será noutra existência
E assim como se a rocha dilatada
Fosse uma concentração de tempos
E assim como se o ritmo do nada
Fosse, sim, todos os ritmos por dentro
Ou, então, como uma música parada
Sobre uma montanha em movimento

Chico Buarque

terça-feira, maio 08, 2007

terça-feira, maio 01, 2007

Trago largo

Ponho de lado a razão que,
em alto e bom som,
me fizeste esquecer.

Sigo pontos,
pontos de fuga assinalados
que atingem em cheio dois olhos.

Raros momentos,
uma dupla
acompanhando atenta toda a ação,
esperando algo acontecer.

Em um trago largo,
num único gole sorvo toda,
e o que sobra é um gosto amargo
que não me deixa dormir.


Escolho não responder,
crescer está fora de meus planos.
Sentada a minha frente pergunta calada e dou risada.

Passo a frente e receio que o passado me condene.
Um velho perguntou e deixei no ar,
por pouco não me perco.

Num instante de desleixo
põe-se tudo por água abaixo.
O amargo não vai embora
e não encontro razão para acordar.